sábado, 16 de agosto de 2008

PHAROS

PHAROS
Nelson Silva

Toda aquela gente já havia, de algum modo, se habituado ao incessante ruído de um frenético martelar que de uns dias para cá estava inquietando sobremaneira o aparente sossego de Vila do Ouro: um obstinado forasteiro desembarcara ali - ao que parece com o intuito de fixar-se definitivamente na região - imbuído da titânica tarefa de construir, sob o sol inclemente, sua habitação. A arquitetura chamava a atenção por destoar em absurdo contraste com os esquálidos casebres que dominavam a rústica paisagem.
O intruso, que parecia ter sido extraído de uma novela de Jack London, demonstrava uma força descomunal no soerguimento dos pesados materiais utilizados em sua prodigiosa obra.
Embora recusasse categoricamente o auxílio dos habitantes locais em sua lida, agradecia a solidariedade exibindo um sorriso laranja, fruto talvez do eterno uso de um proeminente cachimbo ocre, teimosamente dependurado nos grossos lábios.
Inexplicavelmente, atraíra o amor interesseiro de um pequeno ajuntamento de gatos. Presumia-se ser em virtude do odor de peixe ( sabe-se lá de onde trouxera o petisco! ) que exalava da propriedade, sobretudo ao cair da tarde, elegendo-os – e os bichanos a ele - como únicos e devotados companheiros.
De onde quer que houvesse saído o inusitado ser, não fazia sentido algum a sua presença e o seu curioso edifício em Vila do Ouro, um ponto perdido nos confins de uma árida planície, onde lagartos e homens sobreviviam penosamente ao lado de escorpiões e cactos.
Os subterrâneos outrora abundantes em ouro e que fascinaram levas e levas de exploradores atualmente não passavam de catacumbas que encerravam em suas entranhas apenas sonhos soterrados. Após o veio metálico definhar completamente, aqueles que não puderam bater em retirada nas caravanas esfarrapadas que desapareciam no horizonte fundaram ali o remoto povoado.
Já que o ouro lhes levara a alma, então que ao menos suas picaretas continuassem escavando a terra seca em busca de água para lavar-lhes o sangue.
De qualquer forma, como não reuniram coragem suficiente para interpelar a exótica criatura, assimilaram-na ao cenário íngreme, embora sua fantástica construção causasse contínua surpresa entre aqueles homens rudes.
Ainda estavam para ver, contudo, algo muito mais impressionante.
Poderia o feérico personagem ter erigido seu solar no litoral, onde decerto contemplaria as velas esvoaçantes das embarcações no oceano, mas encontrava-se tão distante da orla marítima quanto os esquimós estão para as tribos nômades do Saara.
Dir-se-ia mesmo que sua indumentária soava inadequada ao estereótipo daquele século moderno e, para dizer a verdade, não se ouvira dele uma palavra inteligível sequer que fosse compatível com o vocabulário usual da população.
A estranha figura era como uma miragem no deserto escaldante.
À medida que os dias se sobrepujavam uns aos outros, o ruído dos afazeres do estranho fizera-se mais intenso, dando a entender que ele estivesse a correr contra o tempo.
Ao cabo de algumas semanas, poderia se distinguir algo como uma torre de gávea, mas não se chegou a nenhuma conclusão a respeito.
A urgência nervosa da atividade infernal percorria os ouvidos e singrava os espíritos atormentados da vizinhança, a essa altura bastante familiarizada com a labuta insólita de seu Hércules provinciano.
No meio de uma determinada noite, porém, o inquietante barulho cessou abruptamente.
Ao romper de uma aurora incerta, os primeiros raios de sol violeta finalmente revelaram a estupenda criação.
O herói, ao que parece, despencara do alto da desmedida estrutura que vinha há tempos edificando: jazia estatelado ao solo, junto às pedras de granito, mármore, resina e calcário remanescentes de sua elaborada edificação.
Soube-se logo que fora sumariamente executado por aqueles pobres diabos. Um pequeno grupo de bandoleiros cumpriu com enorme competência a promessa de dar cabo de sua existência naquela madrugada com o sórdido objetivo de assenhorear-se do ouro que julgavam ter ele encontrado.
Acima dos conspiradores, o portentoso farol erigido aos ares pelo ádvena os contemplava imponentemente, lançando incandescentes luzes de fornalha, de um nítido branco, aos recônditos mais inacessíveis do lugarejo, e aterrorizando os mochos, que já não mais distinguiam o dia da noite nem a morte da solidão.
Era como se estivessem na ilha de Pharos, em 280 a.C., aos pés da admirável invenção do rei Ptolomeu II, projetada pelo arquiteto grego Sostratus de Cnidos, a saber, o Farol de Alexandria, uma das maravilhas do mundo antigo.
Teria o enigmático construtor soerguido aquela inusitada obra de engenharia, em Vila do Ouro, para defender aqueles miseráveis de alguma iminente catástrofe de que somente ele, em sua aparente loucura, tivesse conhecimento?
Antes que se refizessem da assombrosa visão e sem tempo de concluir suas elucubrações, foram surpreendidos de forma trágica por uma gigantesca embarcação talvez fenícia, quem sabe comandada pelos marinheiros perdidos de Necho, que irrompeu violentamente do nada, como se mar e praia ali houvesse, espatifando-se sobre o povoado e matando todos que ali no momento se encontravam.
Os poucos sobreviventes da tragédia enlouqueceram de forma progressiva e pereceram logo em seguida, já que era absolutamente impossível compreender e conviver ao mesmo tempo com a assustadora cena de um farol que não dava para mar algum.
Dizem que atualmente apenas mochos habitam a região, compartilhando-a com lagartos, escorpiões e cactos.
Ah, e gatos, é claro.

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