quinta-feira, 26 de março de 2009

25 de Março: Dia do Maracatu Cearense
















(...) Ô Maria, chama o pessoal, o nosso maracatu, ô Maria, já vai começar... O terreiro tá em festa, hoje é noite de luar, quero ver você, ô Maria, maracatucar, ô, maracatucar, ô, maracatucar.










Marcos Gomes sobe na cadeira para trocar a lâmpada dentro da sede do grupo Maracatu Az de Ouro, enquanto lá fora, na calçada-palco da rua Edete Braga, alguém alinha os fios e mexe nos botões da mesa de som. São quase 7 da noite, horário previsto para o ensaio de domingo. Maracatu ou cambinda, termo da linguagem banto que significa “ir adiante, ir além”, “dança”, “batuque”, entre outras definições, é um cortejo – dança dramática – que re-interpreta os impérios portugueses e as reinages francesas (instituições tradicionais da Europa que coroavam anualmente seus reis), convergindo às tradições africanas. Deriva das nações do Rei do Congo e do Alto do Congo. A instituição Rei do Congo, criada na segunda metade do século 17, tinha por finalidade executar a parte administrativa e a representação do ato dos congos (teatro, música e dança). Os escravos coroavam seus reis e rainhas às portas da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em Recife, e à frente da igreja homônima (construída no século 18) em Fortaleza, na praça dos Leões.
Maracatu Az de Ouro. Foto - acervo Afrânio Rangel & Casa da Memória EquatorialO Az de Ouro foi fundado em 1936 pelo tecelão cearense Raimundo Alves Feitosa. “Boca Aberta”, como era conhecido, voltou de Recife – onde trabalhara por três anos – com a idéia de criar o seu próprio maracatu. No Carnaval de 1937, em Fortaleza, o Az de Ouro desfilaria na avenida Domingos Olímpio com 42 participantes, usando adereços de morim e renda, costurados pela irmã de Feitosa e pelo alfaiate, e também fundador, Raimundo Nêgo. Pessoas começam a se aproximar. Um senhor de barba branca recebe os cumprimentos dos amigos: é o Juca do Balaio, brincante mais antigo do Az de Ouro. “Eu funciono com o maracatu desde 1940. Tenho 82 anos e ainda levo esse barco pra frente.” Juca narra a história do grupo, os desafios, a evolução. Lembra da facilidade que Raimundo Feitosa tinha para compor letras: “Numa conversa da gente, ele criava uma loa. Depois eu fiquei com esse espírito dele, fazendo o mesmo trabalho”. Juca é o ancião – todos fazem questão de ir até ele e ouvir suas palavras.
Balaieiro - Xilogravura: JoãoPedro do Juazeiro do Norte Balaio é o chapéu de frutas que o personagem (balaieiro) de Juca leva na cabeça durante as apresentações. Simboliza a fertilidade da terra: “O que a gente leva de fruta representa também o que os escravos levavam, porque naquela época não existia transporte, nem nada. Eles levavam na cabeça o balaio de fruta para vender nas casas, nas cidades. Eram os vendedores de frutas chamados ‘pregoeiros da liberdade’”. O ator Sílvio Gurgel lembra que, há muitos anos, quando terminavam os desfiles, os participantes do cortejo tiravam todas as frutas e comiam, “mas hoje não, porque o balaio é feito de plástico para ficar mais leve e mais prático”. O grupo de Feitosa não foi o precursor do maracatu em Fortaleza, vez que no final do século 19 já havia registros da dança narrados pelo escritor Gustavo Barroso (1888-1959). No livro Coração de Menino, de 1939, ele conta suas lembranças juvenis dos maracatus do Outeiro e do morro do Moinho, que desciam para a cidade em “filas de negros cobertos de cocares escuros, com saiotes de penas pretas, dançando e cantando soturnamente ao som dos batuques e maracás”. Essa constatação, no entanto, não exclui o papel do “Boca Aberta” no incremento do maracatu cearense. Durante décadas, o grupo Az de Ouro saiu apenas com homens, já que, segundo Feitosa (no jornal O Povo, 13 de maio de 1995), “as mulheres brincavam nos blocos delas, nos blocos das moças”. Dessa forma, os homens, não obstante o preconceito, travestiam-se para representar os personagens femininos. Ele mesmo, além de macumbeiro (quem inventa e canta as músicas), foi também rainha do Az de Ouro. Atualmente, homens e mulheres participam dos desfiles.
Foto: divulgação. Espetáculo Rei Leal Na roda de prosa estão presentes o ator Beto, que há três anos faz o espetáculo Auto do Rei Leal, uma adaptação de Shakespeare que utiliza a estética do maracatu, e o músico Brenner, cuja banda Vigna Vulgaris estabelece a fusão de rock com a célula rítmica do Az de Ouro. Cada um assimila a mensagem do folguedo à sua maneira, transplantando-o para outras vertentes artísticas. É lá no bairro Jardim América, numa rua estreita e escura, que a tradição popular floresce. O ritmo do maracatu cearense era semelhante ao coco, rápido, mas a partir de 1950 ganhou lentidão e dolência. Caixas, bumbos, chocalhos e o triângulo de ferro fazendo o repinique: um som seco e alto, semelhante ao atrito de espadas. É essa cadência arrastada a mais marcante do Ceará, embora varie em alguns grupos, gerando controvérsias quanto à ruptura das tradições. Feitosa dizia que a batida mais lenta e mais requebrada era “para as baianas ficarem requebrando mais bonito no meio da rua”. Outra característica da solenidade cearense é a pintura do rosto “para a gente ficar bem mais escuro, mais parecido com as negras escravas, vindas da África”. As tintas do Az de Ouro ainda hoje são confeccionadas em processo artesanal – mistura de pó de lamparina, talco sem perfume e vaselina – porque, conforme explica Juca do Balaio, “as tintas industriais são muito secas”.
Foto: divulgação. banda Maracatu Vigna VulgarisPara o cineasta e escritor Rosemberg Caryri, a pintura do rosto é curiosa: “Na nossa cultura, nós tivemos um contingente de escravos negros pequeno em relação aos outros Estados. Isso faz com que os caboclos, os mestiços pobres da periferia, se pintem de negro, ‘sofrendo’ essa saudade da África mítica”. Em 1979, pelo decreto municipal da gestão de Lúcio Alcântara, o 13 de maio passou a ser oficialmente o Dia do Maracatu, aludindo à data de abolição do escravismo no Brasil. Sabe-se, todavia, que o Ceará já havia declarado a extinção desse sistema em 1884. Sete e meia, o batuque (bateria) é formado e os vizinhos sentam ao redor, nas calçadas, para assistir ao ensaio. O comerciante José Augusto trouxe a família para acompanhar: “É apaixonante.” A fila do ritmo começa com o triângulo, depois vêm a caixa e o surdo. São cerca de vinte instrumentistas. Logo, as dançarinas se posicionam. Ensaiam passos e coreografias. Algumas crianças tentam imitar. Atrás do microfone, Alê S. pede mais ânimo: “A gente não escutou a galera cantando o refrão. É muito importante o batuque cantar porque fica o conjunto completo”. No ensaio de domingo estão apenas as baianas, o batuque e o maculelê. Mas, quando figuram na avenida, o cortejo cresce e é dividido em alas. Na corte real, a rainha é a figura principal, expressando a predominância do primitivo domínio da mulher na formação familiar africana. O rei e a rainha são protegidos pelo pálio ou chapéu de sol, de cores vistosas (herança da África Setentrional). Completam a corte: príncipe, damas de honra, embaixadores, vassalos, damas do paço e baianas. Lampiões (combinação mista de herança da liturgia católica, das procissões, culto ao fogo e estilização do archote) iluminam o caminho, envolvendo a dança. A ala das negras inicia com a calunga, uma pequena boneca vestida de baiana: símbolo da sobrevivência totêmica das tribos e nações africanas escravizadas no Brasil. Silvio Gurgel assinala que é “como se fosse a filha de todo o maracatu”. No livro Folguedos Natalinos - Maracatu, o folclorista alagoano Theotônio Vilela Brandão (1907-1981) afirma que a calunga também fora denominada Santa Bárbara. Nas reinages e impérios, era costume levar na mão ou em charola a imagem do santo padroeiro para esconder o nome de Xangô, orixá dos raios, o qual denomina os cultos negros do Nordeste. Por isso, o pesquisador alagoano, em seu livro, incluiu o maracatu nos autos de Natal.
Coroação de uma Rainha Negra. Xilogravura: João Pedro do Juazeiro do Norte O ápice do cortejo acontece quando o rei e a rainha são coroados: uma possível rememoração do coroamento da rainha Ginga, soberana negra de Angola que combateu os colonizadores portugueses. As negras saem em fileiras, solicitando individualmente a “bênção real”. Depois voltam e continuam dançando. Durante a coreografia, a baiana Malu abre os braços em sinal de agradecimento. Ela diz que é uma “reverência à Oxalá”. Muito satisfeita, conta que o ensaio também lhe serve de “terapia contra o estresse da rotina”. Outra brincante da ala das negras, a pedagoga e pesquisadora Denise Azevedo, diz que conheceu o maracatu através dos seus alunos. Mesmo assim, afirma ter sido prejudicada pela direção da escola em que lecionava, pois esta não via o maracatu com bons Outra presença marcante no cortejo é a ala dos índios. O Ceará teve muita mestiçagem entre as culturas tapuia e ibérica: a chamada “civilização do couro”. “Houve no período colonial o encontro do negro com o índio. O negro que fugia para os quilombos muitas vezes encontrava os índios no sertão, lá no fundo, e passava a conviver”, explica Rosemberg Caryri, que executa diversos trabalhos de pesquisa e resgate da cultura popular nordestina: filmes, textos e gravações de CDs, como o Maracatus & Batuques (coleção Memória do Povo Cearense, volume V). Seu filho, Petrus Caryri, segue o exemplo. É dele o documentário Maracatu Fortaleza, de 2003. O filme traz depoimentos das principais autoridades “maracatuzeiras”, alternados com imagens de cortejos. Há pouco, no intervalo, alguém havia reclamado que o ritmo estava acelerado. Um fusca amarelo interrompe provisoriamente o ensaio. O batuque e as baianas abrem espaço para o carro atravessar, mas logo retornam. Pingo de Fortaleza acompanha o batuque com seu violão. Do palco-calçada, sugere que respondam ao refrão olhando para o céu, para incrementar a dramatização. Um grupo de capoeira comparece atrás do batuque. Cada componente porta dois pedaços de pau. Não, a intenção não é brigar, e sim dançar o maculelê. A Associação Palmares desfila com o Az de Ouro há quatro anos. “O maculelê também é uma dança afro-brasileira, e foi trazida para dentro da capoeira através do mestre Bimba”, afirma Ernesto, o mestre Índio. Inovação importante. “A gente vê que o ritmo daquele balançado tem tudo a ver com o maracatu”. Após alguns acertos e muitas loas, o ensaio termina, por volta das 9 horas da noite. Hora de guardar os instrumentos. Marcos Gomes pede voluntários para a fabricação de roupas, e avisa que precisa de fotos para a carteirinha das crianças. Ele preside o Az de Ouro desde 1993. Marcos pensa no maracatu para além do Carnaval: “Hoje, a idéia é transformar o maracatu em entidades socioculturais para trabalhar com a comunidade em todas as áreas: música, pintura e demais artes”.
Macumbeiro do Az de Ouro, 1967. Doação de Afrânio.Ano passado, o Az de Ouro desfilou na avenida com 280 pessoas. Em 2005, a participação aumentou em cerca de 10 por cento. “Os brincantes comparecem mais em época de Carnaval. Fora isso, a gente tem a necessidade de buscar as pessoas durante o ano inteiro.” Com a loa A Paz de Oxalá, a agremiação conquistou o terceiro lugar entre os oito maracatus que concorreram ao prêmio. Em Fortaleza, as agremiações carnavalescas são divididas em blocos, cordões, escolas de samba e maracatus. Nestes, os juízes observam seis quesitos: porta-estandarte, fantasia, balaieiro, rainha e batuque. Em sua história, o Az acumula dezoito títulos de Carnaval. Segundo Juca do Balaio, já tentaram excluir o maracatu das festividades de Momo, alegando ser “uma coisa muito lenta, que deveria estar apenas no dia do folclore”. Felizmente não vingou, continuando o maracatu a ostentar sua beleza na avenida. Os turistas e as pessoas da cidade prestigiam os desfiles sem economizar aplausos, fotos e sorrisos. “Quando eu comecei, o maracatu era bem pobrezinho, aí a gente foi melhorando a estrutura e hoje tem mais luxo, chama mais a atenção do público”, conta José Ferreira de Arruda, que há 46 anos sai como rainha do Az de Ouro. Há promessas de maior investimento para o Carnaval de 2006. No orçamento de 2003, a Fundação de Cultura, Esporte e Turismo de Fortaleza (a Funcet) captou 50.000 reais para suas atividades, inclusive o Carnaval. Quantia singela, se comparada aos 4 milhões investidos pela prefeitura de Recife em 2005. Erivaldo Casemiro, diretor da Funcet, afirma que há um projeto para fazer o Carnaval nas seis regionais da Grande Fortaleza, com bailes infantis e adultos. O orçamento previsto para 2006 é de 900.000 reais: “Estamos fazendo um plano para pré-Carnaval, Carnaval e pós. Iremos fazer oficinas de dança, música, figurinos e preparação de adereços”. Esse projeto tem a parceria da Funcet com a Federação das Agremiações do Ceará. Erivaldo afirma também que será feito o “resgate do Museu do Maracatu, com uma infra-estrutura necessária”. (...) Ô Virgem do Rosário, é chegada a hora, levanta a bandeira, vamos embora. Adeus, Cambimba, adeus, adeus, Cambimba, adeus... Raimundo Feitosa deixou herança singular na cultura cearense: pensou em algo diferente para desfilar na sua terra e conseguiu. “Hoje está todo mundo querendo criar um maracatu, e em toda parte que você anda só se fala em maracatu. Muita gente consegue êxito através do maracatu”, orgulha-se Juca do Balaio.










João Mauro é jornalista.










Do site da revista Caros amigos especialmente para o mensageiro da realidade.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Assombrações de Diamantina






Relatos sobre fantasmas e aparições eram tão comuns na cidade mineira, na virada do século XIX para o século XX, que chegaram a virar notícia em vários jornais locais. Embora sejam fantásticas, as lendas revelam a cultura e a história da região.
Os garimpeiros de Diamantina acreditavam que espíritos iriam aparecer e dizer onde estavam exatamente as pepitas de ouro e os diamantes. Mas para que isso acontecesse, era preciso que o minerador tivesse o coração puro
Muitos diamantinenses acreditam que o atraso da região do Alto Jequitinhonha, no nordeste de Minas Gerais, deve-se aos fantasmas de escravos que vagam por ali. De tanto sofrerem violências nas lavras de ouro e diamantes, as almas desses homens exerceriam uma espécie de maldição que impede o desenvolvimento econômico regional. As brutalidades do passado, sobretudo porque ainda não foram devidamente expiadas, teriam lançado Diamantina e as cidades vizinhas em uma condenação inelutável. A pobreza que assola aquelas terras seria a conseqüência da lenta reparação moral e religiosa necessária para pacificar uma multidão de espíritos que perambulam por aqueles confins.
Casos de aparições, eventos sobrenaturais e lugares mal-assombrados são comuns em qualquer ponto da Serra de Santo Antônio. Pertencem à tradição oral das comunidades, tanto rurais quanto dos núcleos urbanos regionais, chegando a entreter a imaginação dos turistas mais curiosos que visitam Diamantina.
Os contos fantásticos são meios para entender como os homens viam e pensavam o mundo
É comum na religiosidade popular os devotos fazerem “negócios” com os santos, exigindo bens e vantagens concretas em troca de orações e outras promessas
Em Diamantina, memorialistas escreveram sobre almas penadas que percorriam ruas, becos e caminhos situados nas alturas do Espinhaço Central. Narrativas fantásticas estão presentes nas obras de Helena Morley, Cyro Arno e Aires da Mata Machado Filho, escritas entre os anos de 1893 e 1945. A imprensa local também registrou números significativos de histórias de fantasmas e de eventos sobrenaturais ocorridos na região. Essas lendas apareceram em diversos jornais, ligados ou não à Igreja Católica, no final do século 19 e início do século 20. Um exame nas coleções de periódicos antigos, guardados na Biblioteca Antônio Torres, em Diamantina, revela um dado interessante: registros desse de assombrações concentraram-se nas primeiras décadas do século 20 e, em seguida, cessam-se rapidamente. Tal fato deixa algumas perguntas no ar: teriam sido os homens e mulheres diamantinenses do fim do século 19 e do início do 20 mais supersticiosos que os das décadas posteriores ou anteriores? Por que a elite letrada, que produzia os jornais, deu tamanha visibilidade para as histórias de fantasmas naquela época? Seria uma simples questão de simpatia pelos relatos populares?
Os historiadores da cultura local desconfiam que existe algo mais por trás dessa súbita e intensa atenção dos jornais e dos memorialistas pelas aparições de fantasmas em Diamantina. Além de tratar essas narrativas como documentos, os historiadores entendem que o insólito lança luz sobre os desejos, os temores, as angústias, os valores morais e as esperanças que movem os grupos sociais e as comunidades. Ao contrário de Afonso d’Escragnolle-Taunay, autor da conhecida obra Monstros e monstrengos do Brasil, o historiador de hoje não pretende distinguir o verdadeiro do falso. Atualmente, a preocupação é outra, e os contos fantásticos são vistos como meios para entender como os homens viam e pensavam o mundo. Lugares mal-assombrados, fantasmas, monstros, deformações, magia e malefícios integravam o mundo dos homens do passado, como ainda hoje têm presença no mundo atual, e representam estruturas mentais que moldam a cultura da região.

OS MORTOS NA CULTURA REGIONAL Nas áreas mineradoras de Diamantina, como em todo o Brasil escravista, uma religiosidade popular bastante típica resiste aos séculos. Ela parece, de um lado, querer humanizar Deus e os santos, tornando-os partícipes da vida dos devotos. Nesses lugares, era comum para essa gente fazer “negócios” com Jesus, Nossa Senhora e os santos, demandando bens e vantagens concretas. Quando o fiel julgava não ter sido atendido pelos céus, insultava, agredia e intimidava as imagens sagradas. Por outro lado, também havia espaço para o diabo, uma vez que as pessoas costumavam invocar o demônio para alcançar fins torpes. Dessa forma, na religiosidade popular de agricultores e mineradores, os santos e os demônios, que podiam ser chamados por palavras encantadas, estavam em toda parte. Feiticeiros, benzedores, rezadeiras e adivinhos espalhavam-se pelas vilas e povoados de Minas Gerais. Eram procurados pelas pessoas brancas e de cor, ricas e pobres. As mandingas e os calundus, tão comuns no século 18, realizados ao som dos atabaques, pandeiros e canzás, envolviam adivinhações, sortilégios, possessões, curas e folguedos.

A religiosidade popular nas áreas mineradoras, sob o impacto das contribuições culturais africanas, resultou na crença de que a alma dos mortos permanece próxima dos vivos. Entre o mundo incognoscível e a Terra, a fronteira não seria intransponível. Para os mineiros do passado, os mortos deveriam ser evocados pelos vivos e os espíritos dos mortos poderiam interferir no mundo cotidiano, o que freqüentemente ocorreria. Um exemplo dessa crença eram os “anjinhos”, as crianças que morriam antes de completar 7 anos. Acredita-se que as almas dessas crianças se transformam em anjos, que viram protetores dos familiares e amigos. Outro exemplo da influência dos espíritos sobre os vivos eram os exorcismos, como o caso da jovem possessa Mariana, ocorrido por volta de 1695, no Maranhão. E, é claro, havia os espíritos errantes dos mortos, as visagens que surgiam do nada. Nas áreas de mineração, circulavam inúmeras narrativas sobre almas penadas de pessoas que morreram em conseqüência de violências, traições ou que tiveram a vida marcada por sofrimentos, injustiças e humilhações. Eram espíritos atormentados em busca de reparações que abrissem as portas dos céus para eles.
A MOÇA E A VELAO conto de terror da “moça e a vela” é um dos mais famosos de Diamantina.
MISTÉRIOS DE FUNDO MORAL Um dos contos de terror mais famosos de Diamantina é o caso da “moça e a vela”. Certa vez, à meia-noite, uma moça que sempre passava as noites debruçada na janela, fitando a rua, foi abordada por um desconhecido trajando hábito branco e com uma vela acessa na mão. O homem saudou a moça, apagou a vela e entregou a ela, pedindo que guardasse até sua volta. A moça recebeu a vela, colocou- a sobre a cama e voltou para a janela. Ás duas horas da madrugada, o desconhecido retornou e pediu a vela. A moça foi buscá-la na cama, mas deparou com um esqueleto estendido. A caveira se ergueu e saiu voando pela janela, como se fosse uma pluma, diante dos olhos apavorados da moça.
Esse “conto religioso”, como denomina o historiador Câmara Cascudo, contém uma carga moral evidente. Mas há outras narrativas de fantasmas nas quais as mensagens morais são menos explícitas, como a da procissão de escravos, que ainda hoje circula entre moradores mais velhos de Diamantina. Eles contam a história de uma procissão de escravos e escravas, arrastando ruidosamente pesadas correntes, que sobe a Rua das Mercês até se dissolver na altura da igreja. Os moradores podem ouvir o som da estranha caminhada, porém somente vêem o cortejo das almas as pessoas que morrerão naquele mesmo ano.

Os diamantinenses sempre tomaram cuidado diante das forças sobrenaturais e temeram as aparições de fantasmas (ver box 2). Pelo sim pelo não, procuravam ser cautelosos com os fenômenos. Conforme registrou a escritora Helena Morley, menina de descendência inglesa que morava em Diamantina no fim do século 19: “Desde pequena sofri com a superstição de todos os modos. Se estivéssemos sentados à mesa em treze pessoas, sempre eu é que tinha de sair. Pentear o cabelo de noite, em nenhuma hipótese, pois se manda a mãe para o inferno. Varrer a casa à noite faz a vida desandar. Quebrar espelho traz desdita. Esfregar um pé no outro, andar de costas e outras coisas que não me lembro agora, tudo faz mal. O engraçado é que todos sabem que superstição é pecado, mas preferem levar o pecado ao confessionário a fazerem uma coisa que alguém diz que faz mal”.

No universo do garimpo, atividade dinâmica da economia do Alto Jequitinhonha, o sobrenatural possuía papel destacado. Os garimpeiros acreditavam que o sortilégio era o elemento essencial do ofício da mineração. Para determinar o lugar da boa cata, o garimpeiro lidava com sinais sobrenaturais, adivinhações e sonhos. Compreender o “jogo do rio” – a variação dos lugares por onde passou o leito do rio no passado geológico – era tão importante quanto interpretar corretamente os sinais oferecidos por sonhos e visagens. Espíritos de mortos diriam a pessoas humildes o lugar exato onde se escondiam ouro e diamantes. O diamante teria força energética sobre os homens: quanto mais farra o garimpeiro fizesse, mais pedras ele acharia. Para tirar diamante, seria preciso o minerador estar com o coração limpo. Do contrário, o diamante poderia estar ao lado da pessoa, mas ela cavaria no lugar errado. Os grandes diamantes também teriam dono certo, de maneira que não poderiam ser garimpados por mais ninguém. E, por fim, o que o diamante dava, ele tirava. É nesse pano de fundo de crenças seculares que os registros dos memorialistas e da imprensa de Diamantina devem ser analisados.
Nas áreas de mineração, circulavam inúmeras lendas sobre almas penas e espíritos atormentados, que entravam em contato com os vivos em busca de reparações
O LADRÃO QUE VIRAVA VASSOURA A escritora Helena Morley registrou em seu diário, no dia 29 de janeiro de 1893, o medo que os moradores da região sentiam por causa dos feitos de uma criatura tida como sobrenatural: “Está correndo na Boa Vista que anda por aí um ladrão muito malvado, que passou em Diamantina e os soldados não puderam pegar. Ele mata para roubar, e quando os soldados chegam, se é em casa, ele vira vassoura, cadeira ou outra coisa; se é no mato, ele vira cupim. Todos vivem apavorados”
Para retirar-se em paz desse mundo, o espírito do morto deveria dispor de tempo para acertar seus negócios terrenos
Em 14 de março do mesmo ano, Helena Morley voltou a escrever sobre esse misterioso ladrão, contando como ele havia escapado do povo do Rio Grande, transformando-se em cupim perto do Glória. Segundo a menina, o povo acreditava que o malfeitor deveria ter parte com o diabo. Mais do que isso, deveria se tratar de um espírito mal.
Outra manifestação sobrenatural envolvendo pessoas de Diamantina, foi o caso de um filho de Antônio Felício dos Santos, negociante de diamantes, industrial e primeiro presidente da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. O rapaz, que falecera repentinamente em Diamantina, no mesmo dia e hora tocou a campainha da casa da família em Botafogo, no Rio de Janeiro. Apareceu para sua mãe e despediu-se dela. Assustada, a senhora desmaiou no mesmo momento. Fato semelhante ocorreu com um estudante diamantinense no Caraça. O moço faleceu no colégio e, enquanto seu corpo estava depositado na capela, apareceu ao superior, que no momento participava aos parentes sua morte, e fez recomendações. Essa aparição teria sido testemunhada por dom Viçoso, bispo de Mariana, e narrada por dom Francisco de Paula e Silva. Outro contato de fantasma teria acontecido na Festa do Rosário, de 1889. Uma voz que não a do celebrante entoou “glória”, sendo seguida pelo coro. A voz era do vigário falecido, o cônego Joaquim Alves de Campos.


A noção popular de justiça surge em narrativas de aparições associadas ao sucesso na mineração
Conforme os memorialistas e a imprensa de Diamantina, os espíritos manifestaram-se para o povo, tanto nas ruas como no campo, nas casas de famílias e nas igrejas, ora gerando pânico – como no caso anotado por Helena Morley –, ora deixando no ar doce mistério, sinal do poder do amor filial ou da vontade dos santos. Os casos das aparições dos moços repentinamente mortos longe de seus familiares indicam o valor que a sociedade de Diamantina atribuía à noção tradicional de “boa morte”. Para retirar-se em paz desse mundo, o espírito do morto deveria dispor de tempo para acertar seus negócios terrenos, cercar-se dos parentes e amigos nos momentos finais da vida, ser velado por muita gente após o falecimento, e ter missas rezadas por sua alma. Quando tais circunstâncias não ocorriam, o morto poderia reaparecer para os vivos e fazer recomendações ou assombrá-los.
Corria a lenda em Diamantina e nas cidades vizinhas que um ladrão que matava as suas vítimas nunca era pego pela polícia porqur tinha o dom de se transformar em certos objetos, como vassouras e cadeiras. Alguns acreditavam que ele tinha feito um pacto com o diabo; outros achavam que o malfeitor era um espírito mal
JUSTIÇA, MESMO QUE SEJA PÓSTUMA Uma notícia que reforça a crença de “boa morte” foi publicada pelo jornal A Idea Nova, em 29 de novembro de 1908. Intitulada “Alma do outro mundo. Si non é vero...”, a nota conta o caso que aconteceu em um lugar chamado Chácara das Bicas, célebre porque lá Joaquim Felício dos Santos escreveu o projeto do Código Civil. Em 1892, ocorreu ali um crime e, em 1896, a Câmara Municipal adquiriu aquela casa para abrigar pacientes portadores de varíola, sendo que alguns deles foram enterrados na horta da chácara. O jornal conta que, na época da notícia, essa casa era habitada por José Bastos, que relatou que quando ele saiu de casa às 19 horas, uma mulher de estatura baixa apareceu, disse que se chamava Maria, que morreu “de bexiga”, e havia sido enterrada naquele lugar. A mulher pediu a José Bastos que ele mandasse rezar uma missa por ela.
A aparição contada por José Bastos reitera que as pessoas que tiveram vida sofrida, ou que experimentaram enormes humilhações, corriam o risco de virar almas penadas. Os diamantinenses acreditavam que a salvação dessas almas dependia da influência dos vivos, da comiseração dos cristãos em mandar oficiar missas e novenas em intenção desses espíritos atormentados. A aparição da mulher também sugere a idéia de um senso tradicional de justiça que clama por reparações, mesmo que sejam póstumas, para indivíduos pobres, arrancados do convívio de suas comunidades, separados das redes de solidariedade que davam coesão e minoravam a dureza do cotidiano dos grupos sociais populares.
Essa noção popular de justiça surge também em narrativas de aparições associadas ao sucesso na mineração. Trata-se da crença de que Deus recompensa pessoas simples, religiosas e trabalhadoras, com a descoberta de tesouros. Assim, em maio de 1909, uma aparição teria agitado Diamantina. O registro feito pelo historiador José Teixeira Neves conta que “o padre Brasão apareceu para uma lenheira. Queria mostrar-lhe onde estava enterrado o tesouro, mas disse para ela não olhar para trás. Voltando-se, a mulher viu um esqueleto que logo desapareceu”. Aires da Mata Machado Filho, filólogo e memorialista diamantinense, narrou outra história de fantasma que indicava tesouros, recolhida na tradição oral da cidade de Diamantina, no início do século 20: “Um dia, certa mulher apareceu a uma beata do Beco dos Beréns. Vinha para indicar com precisão o lugar onde estava enterrada uma garrafa cheia de diamantes. É o que dizem. Muita gente andou cavando com ansiedade, não só nesse lugar, mas na casa de Chica da Silva e muitos outros pontos”.

Embora os tesouros do padre Brasão e da beata do Beco dos Beréns não tenham sido encontrados, permanece a teimosa esperança de que chegará o dia em que alguém vai descobri-los. Ainda hoje garimpeiros do Alto Jequitinhonha acreditam nisso. A crença não é totalmente desprovida de fundamento, já que, em 1969, para citar somente um caso, operários que trabalhavam no alargamento de um muro, no Arraial dos Forros, acharam uma quantidade enorme de moedas antigas de ouro e de prata. Na ocasião, o então prefeito de Diamantina, Sílvio Felício dos Santos, deixou com os trabalhadores as moedas que eles haviam encontrado.
A SUPERSTIÇÃO VIRA NOTÍCIA Até mesmo a mais alta autoridade eclesiástica do norte de Minas relatou uma aparição de fantasma. Em visitas pastorais, no ano de 1902, o Bispo Coadjutor de Diamantina, dom Joaquim Silvério de Souza, passou pela paróquia de São Sebastião de Água Vermelha. Lá, realizou 78 crismas, 260 confissões e celebrou 7 casamentos de amasiados. No dia 11 de junho, registrou no seu diário o seguinte caso: “Apresentou-se a nós um pai de família que se queixava de estar sua casa sob ação diabólica. A vítima principal era uma filha de 14 anos. Ela ouvia sempre frases de convite para sair de casa, e pessoas de fora viam cair pedras na sala, objetos caindo das paredes no chão, machados, facas, ferros de coador de café, torrões de terra atirados nas pessoas. Quando a mocinha não estava em casa, tudo cessava. O homem nos contou que o povo dizia que o invisível era um tal de Romãozinho. O menino, a mandato do pai, foi buscar uma chibata ou taca para bater na mãe, que lhe rogou uma praga de não ir para o céu nem para o inferno. Ele ficou vagando pela terra, a bolir ora com um, ora com outro. O tal Romãozinho é muito falado por este norte, e já pelos lados de Lençóis e Montes Claros ouvimos falar de suas proezas. Procurei descobrir se não seria algum tratante, brincador, que atirava as pedras, mas o homem afirmava sempre que não era possível ser pessoa viva, porque tudo examinava bem com muitos outros. Na casa desse pai, o Romão tem quebrado panelas e pratos”. Para acalmar o pai de família, dom Joaquim Silvério de Souza visitou a casa assombrada por Romãozinho e rezou com os moradores e vizinhos.
ROMÃOZINHOSegundo a lenda do fantasma do menino Romãozinho, a mãe do garoto havia rogado uma praga para que o espírito dele não fosse para o céu nem para o inferno. Por isso, a alma de Romãozinho vaga por Minas Gerais até hoje, quebrando panelas e derrubando ferramentas nas casas de família
Ocorrência semelhante foi noticiada pelo jornal A Idea Nova, na edição de 15 de maio de 1910, em uma matéria intitulada “O Diabo em Uberaba: um caso a estudar”. O diário relatava fatos extraordinários ocorridos na fazenda do capitão Gustavo do Nascimento, onde um invisível atirava pedras, virava e quebrava móveis e utensílios, a ponto de causar a retirada da família. Por meio de uma sessão espírita, o dono da casa teria descoberto que o invisível seria uma mulher que abandonara uma filhinha raquítica, que o capitão Gustavo havia tomado para criar. Um padre fora chamado para exorcizar a fazenda, mas o mal espírito seguiu atormentando a família.
Em comum, Romãozinho e a mulher que assombrava a fazenda do capitão Gustavo do Nascimento tinham ofendido em vida a justa “ordem moral” do mundo: o primeiro pecara contra a própria mãe, a segunda abandonara a filha doente. Não fosse o valor intrínseco dessas idéias e a repercussão que encontravam no público diamantinense, por que o jornal A Idea Nova publicaria com destaque notícias como as citadas anteriormente, de comprovação absolutamente impossível?
AS TRANSFORMAÇÕES DE DIAMANTINA As assombrações ocuparam lugar de destaque nas páginas dos jornais e dos memorialistas de Diamantina justamente na virada do século 19 para o século 20. Esse período foi de grandes mudanças na história da região. Mudanças econômicas, sociais e culturais atingiam a sociedade. A euforia da belle époque contagiou toda a cidade. Para algumas camadas da população, era tempo de modernização, de progresso, de civilização e de riqueza. Tempo de novas esperanças e de confiança no futuro. Porém, para outra parcela do povo, talvez a grande maioria, a época era perturbadora, de crise profunda das tradições regionais.
Diamantina continuava a ter na extração e no comércio de diamantes seus negócios mais expressivos. Entretanto, os modos antigos de minerar, herdados do período colonial, baseados no trabalho braçal, em saberes tradicionais e no sistema de praças e “meia-praças” (trabalhadores informais entre os mineradores) entraram em retração. A chegada de companhias nacionais e estrangeiras, que usavam máquinas modernas e energia elétrica, deu início a um processo de concentração das terras minerais, da produção e dos lucros na atividade, além de fornecer um modelo alternativo para o empreendimento minerador – o trabalho assalariado. As comunidades garimpeiras começaram a desesperar, vendo sua sobrevivência e modo de vida ameaçados.



POR MARCOS LOBATO MARTINS

terça-feira, 17 de março de 2009

CONTOS DE H.P. LOVECRAFT

A TUMBA

Ao relatar as circunstâncias que me levaram a ser confinado neste refúgio para dementes, tenho consciência de que minha presente condição criará uma dúvida natural quanto à autenticidade de minha narrativa. É um fato infeliz que a maior parte da humanidade possua uma visão mental muito limitada para pesar com paciência e inteligência aqueles fenômenos isolados que repousam além de sua experiência cotidiana e são vistos e sentidos por uns poucos psicologicamente sensíveis. Homens de intelecto mais abrangente sabem que não há distinção radical entre o real e o irreal; que todas as coisas parecem como são apenas em virtude dos delicados meios físicos e mentais através dos quais tomamos consciência delas; mas o materialismo prosaico da maioria condena como loucura os lampejos de visão superior que penetram o véu universal do empirismo óbvio.
Meu nome é Jervas Dudley, e desde a mais tenra infância tenho sido um sonhador e um visionário. Rico o Suficiente para não necessitar de uma vida profissional, e inadaptado por temperamento aos estudos formais e à recreação social de meus conhecidos, sempre habitei reinos isolados do mundo visível; passei minha infância e adolescência lendo livros antigos e pouco conhecidos, e vagando pelos campos e bosques da região perto da casa de meus antepassados. Não acho que o que li nesses livros ou vi nesses campos e bosques era exatamente o que outros garotos liam e viam por lá; mas disso pouco devo falar, já que uma narrativa detalhada apenas confirmaria aquelas calúnias cruéis ao meu intelecto, que às vezes ouço sussurrarem os serviçais ao meu redor. Basta para mim relatar eventos sem analisar causas.
Eu mencionei que habitei reinos isolados do mundo visível, mas não disse que os habitei sozinho. Isto nenhuma criatura humana pode fazer; por carecer da companhia dos vivos, ela inevitavelmente procura a convivência de coisas que não são, ou não são mais, vivas. Perto da minha casa há um estranho vale, em cujas profundezas sombrias passava a maior parte do meu tempo lendo, pensando e sonhando. Os primeiros passos de minha infância foram dados abaixo de seus barrancos cobertos de musgo, e ao redor de seus carvalhos grotescos e retorcidos teci minhas primeiras fantasias infantis. Mal conheci as dríades que reinavam naquelas árvores, passei a assistir freqüentemente suas danças frenéticas nos débeis raios de uma lua minguante - mas não devo falar dessas coisas. Falarei apenas da tumba solitária na parte mais escura da encosta do bosque; a tumba abandonada dos Hydes, uma família antiga e nobre. cujo último descendente direto foi sepultado em seus recantos negros muito antes de eu nascer.
A cripta à qual me refiro é de granito antigo, desgastado e descolorido pelas brumas e pela umidade de séculos. Encravada na encosta, apenas a entrada da estrutura é visível. A porta, uma laje de pedra maciça e intransponível, é presa por dobradiças enferrujadas, e mantida entreaberta de uma forma sinistra por meio de correntes de ferro e cadeados, de acordo com um estilo horrendo de meio século atrás. A morada da linhagem cujos herdeiros estão sepultados aqui já coroou o declive que sustenta a tumba, mas há muito tombou vítima das chamas causadas pela queda de um raio. Sobre a tempestade que destruiu esta mansão sombria à meia-noite, os habitantes mais antigos da região falam às vezes em vozes baixas e nervosas, aludindo ao que chamam de "ira divina", de uma forma que anos depois aumentou vagamente a sempre intensa fascinação que eu sentia quanto ao sepulcro escurecido pela floresta. Apenas um homem havia perecido no incêndio. Quando o último dos Hydes foi enterrado neste local de sombras e quietude, a triste urna de cinzas veio de uma terra distante, para onde a família tinha se mudado após o incêndio. Não resta mais ninguém para deixar flores no portal de granito, e poucos ousam enfrentar as sombras deprimentes que parecem pairar de maneira estranha sobre as pedras desgastadas pelas chuvas.
Jamais me esquecerei da tarde em que me deparei pela primeira vez com aquela semioculta casa da morte. Foi em meados do verão, quando a alquimia da natureza transmuda a paisagem silvestre em uma vívida e quase homogênea massa de verde: quando os sentidos estão quase totalmente intoxicados com os mares revoltos de verdor úmido e os odores sutilmente indefiníveis do solo e da vegetação. Em tal ambiente, a mente perde a perspectiva: tempo e espaço se tornam triviais e irreais, e ecos de um passado pré-histórico esquecido atingem insistentemente a consciência subjugada.
O dia inteiro eu estivera vagando pelos bosques místicos do vale: tendo pensamentos que não preciso discutir e conversando com coisas que não preciso nomear. Na época, uma criança de dez anos, eu já tinha visto e ouvido muitas maravilhas desconhecidas da maioria; e era estranhamente amadurecido em certos aspectos. Quando, forçando caminho entre duas roseiras silvestres, subitamente encontrei a entrada da cripta, não fazia idéia do que havia descoberto. Os blocos negros de granito. A porta tão curiosamente entreaberta, e os entalhes funerários acima do arco, não despertaram em mim nenhuma associação de caráter melancólico ou terrível. Conhecia e imaginava muito sobre sepulturas e túmulos, mas devido ao meu temperamento peculiar, era mantido à distância de todo contato pessoal com jardins de igrejas e cemitérios. A estranha casa de pedra na encosta da floresta era para mim apenas uma fonte de interesse e especulação: seu interior frio e úmido, dentro do qual eu tentei inutilmente penetrar através da abertura cuja existência me torturava, não continha para mim nenhum sinal de morte ou decadência. Mas, naquele instante de curiosidade, nasceu o desejo loucamente irracional que me trouxe a este confinamento infernal. Impulsionado por uma voz que deve ter vindo da alma hedionda da floresta, resolvi entrar na escuridão convidativa, a despeito das pesadas correntes que barravam minha passagem. À pálida luz do dia, forcei alternadamente os obstáculos enferrujados para alargar a abertura da porta de pedra e ensaiei espremer meu Corpo magro através do espaço já disponível: mas meu plano não encontrou sucesso. Inicialmente curioso, estava agora frenético: e quando voltei para casa no crepúsculo que se adensava, jurei às centenas de deuses do bosque que a qualquer custo eu algum dia forçaria uma entrada às profundezas escuras e frias que pareciam chamar por mim. O médico de barbas grisalhas que vem todo dia ao meu quarto disse uma vez a um visitante que essa decisão marcou o começo de uma lamentável monomania; mas eu deixarei o julgamento final aos meus leitores quando eles tiverem conhecido tudo.
Os meses que se seguiram à minha descoberta foram dedicados a tentativas fúteis de forçar o complicado cadeado da cripta levemente aberta, e a inquéritos cuidadosamente disfarçados sobre a história e natureza da estrutura. Aprendi muito com os ouvidos tradicionalmente receptivos de menino e uma discrição habitualmente me fez não dizer a ninguém sobre minhas informações ou minha resolução. Talvez seja importante mencionar que eu não estava totalmente surpreso ou aterrorizado em conhecer a natureza da cripta. Minhas idéias originais a respeito da vida e da morte tinham me feito associar, de uma forma vaga, o barro úmido com o corpo que respira; e eu sentia que a grande e sinistra família da mansão incendiada estava de alguma maneira representada dentro da câmara de pedra que eu procurava explorar. Histórias murmuradas dos ritos estranhos de uma época passada, que ocorriam na velha mansão, me deram um novo e forte interesse pela tumba, e agora eu ficava sentado em frente à porta horas por dia. De certa feita, coloquei uma vela dentro da entrada quase fechada, mas nada pude ver senão alguns degraus de pedra úmida que levavam a algum lugar abaixo. O odor do local, ao invés de me repelir, enfeitiçou-me. Eu achei que já o conhecia antes, num passado remoto, além de toda lembrança; e até mesmo além do tempo em que arrendei o corpo que agora ocupo.
Um ano depois que avistei a tumba pela primeira vez, deparei-me no sótão cheio de livros da minha casa, com uma tradução roída pelas traças, das Vidas de Plutarco. Lendo a vida de Teseu, fiquei muito impressionado com a passagem que falava da grande pedra debaixo da qual o herói juvenil encontraria seus símbolos do destino quando tivesse idade suficiente para erguer seu enorme peso. A lenda teve o efeito de dissipar minha impaciência aguda em entrar na cripta, pois me fez sentir que a hora ainda não havia chegado. Mais tarde, disse a mim mesmo, eu devia crescer até possuir força e maturidade suficientes para ser capaz de destrancar com facilidade as correntes pesadas da porta; mas até então, seria melhor me conformar com o que parecia ser a vontade do destino.
À medida que minhas observações do portal negro se tomaram menos persistentes, grande parte do meu tempo era dedicada a outros estudos igualmente estranhos. Acordava às vezes, muito silenciosamente à noite, saindo furtivamente para passear naqueles jardins de igreja e locais de sepultamento dos quais eu havia sido mantido afastado por meus pais. Não direi o que fiz lá, pois não estou certo agora da realidade de certas coisas; mas sei que no dia seguinte a uma perambulação noturna, eu podia freqüentemente deixar atônitos aqueles ao meu redor com meu conhecimento de tópicos quase esquecidos há muitas gerações. Foi após uma noite como essa que eu choquei a comunidade com um conceito excêntrico sobre o sepultamento do rico e célebre Squire Brewster, uma figura da história local que foi enterrada em 1711, e cuja lápide tumular, sustentando um crânio de granito e ossos cruzados, estava lentamente virando pó. Num momento de imaginação infantil, afirmei solenemente, não apenas que o dono da casa funerária, Goodman Simpson, havia roubado os sapatos de fivela de prata, meias de seda, e trajes menores de cetim do falecido antes do enterro; mas que o próprio Squire, não completamente inanimado, tinha se revirado duas vezes em seu esquife coberto de terra, no dia depois do enterro.
Mas a idéia de entrar na tumba muna deixou meus pensamentos; sendo até mesmo estimulada pela inesperada descoberta genealógica de que minha própria linguagem materna possuía pelo menos uma ligeira ligação com a supostamente extinta família dos Hydes. Último da minha linhagem paterna, eu era igualmente o último de uma linhagem mais velha e mais misteriosa. Comecei a sentir que a tumba era minha, e a antever impacientemente a hora em que eu poderia transpassar aquela porta de pedra e descer aqueles degraus de pedra limosa na escuridão. Eu havia adquirido agora o hábito de ficar observando intensamente o portal ligeiramente aberto, escolhendo minhas horas favoritas de calma noturna para a estranha vigília. Quando fiquei mais velho, eu havia feito uma pequena clareira em frente à subida barrenta da encosta, permitindo que a vegetação ao redor crescesse e cercasse aquele espaço como os muros e teto de um caramanchão fechado. Esse caramanchão era meu templo, a porta trancada meu altar, e aqui eu ia deitar estendido no chão musgoso, tendo pensamentos e sonhos estranhos.
A noite da primeira revelação estava muito quente. Eu devo ter adormecido de fatiga, pois foi com uma distinta sensação de despertar que ouvi as vozes. Hesito em falar sobre esses tons e inflexões; não falarei de suas características; mas devo dizer que apresentavam certas diferenças estranhas em vocabulário, pronúncia e modo de expressão. Cada tom do dialeto da Nova Inglaterra, desde das sílabas grosseiras dos colonos puritanos até a retórica precisa de cinqüenta anos atrás, pareciam representados naquele colóquio obscuro, embora eu só tenha notado isso mais tarde. Na hora, na verdade, minha atenção fora distraída desse assunto por outro fenômeno; um fenômeno tão efêmero que eu não poderia garantir sua veracidade. Mal percebi que tinha acordado, uma luz se extinguiu apressadamente dentro do sepulcro Subterrâneo. Eu não acho que tenha ficado atônito ou em pânico, mas sei que fui bastante e permanentemente mudado aquela noite. Ao retornar para casa, fui diretamente a uma arca apodrecida no sótão, onde encontrei a chave que no dia seguinte abriu facilmente a barreira que eu tanto assaltara em vão.
Foi num fim de tarde ameno que entrei pela primeira vez na cripta da encosta abandonada. Um feitiço havia caído sobre mim, e meu coração pulava com uma exaltação que mal posso descrever. Quando fechei a porta atrás de mim e desci os degraus gotejantes com a luz de minha vela solitária, parecia saber o caminho; e embora a vela crepitasse com a atmosfera infecta do lugar, eu me sentia peculiarmente em casa naquele rançoso ar de cemitério. Olhando ao meu redor, contemplei muitas lajes de mármore sustentando caixões, ou restos de caixões. Alguns estavam selados e intactos, mas outros haviam quase se desmanchado, deixando as alças de prata e placas isoladas em meio a certas pilhas curiosas de poeira esbranquiçada. Em uma placa, li o nome de Sir Geoffrey Hyde, que tinha vindo de Sussex em 1640 e morrido aqui alguns anos depois. Numa alcova visível, estava um esquife razoavelmente bem conservado e não fixo, adornado com um único nome que me provocou tanto um sorriso quanto um estremecimento. Um estranho impulso me fez escalar até a laje larga, apagando minha vela, e deitando na caixa vazia.
À luz acinzentada do amanhecer, saí cambaleando da cripta e fechei a corrente da porta atrás de mim. Eu não era mais um jovem, embora apenas vinte e um invernos tivessem enregelado meu corpo. Aldeões madrugadores que observaram minha volta para casa me olharam estranhamente, e ficaram pasmos com os sinais de orgia obscena que viram em alguém cuja vida era conhecida por ser sóbria e solitária. Não apareci diante dos meus pais antes de um sono longo e reconfortante.
Depois disso, passei a freqüentar a tumba toda noite; vendo, ouvindo, e fazendo coisas que não devo recordar nunca. Minha linguagem, que sempre foi suscetível às influências do meio, foi a primeira coisa a sucumbir à mudança; e minha súbita obtenção de uma dicção arcaica foi logo notada. Posteriormente, uma estranha audácia e indiferença somaram-se ao meu comportamento, até eu adquirir inconscientemente a conduta de um homem do mundo, apesar de uma vida inteira de reclusão. Minha língua, anteriormente silenciosa, ampliou seu alcance com a elegância de um Chesterfield ou o cinismo ateu de um Rochester. Eu exibia uma erudição peculiar completamente diferente da cultura monacal e fantástica que possuía na juventude: e cobri as capas de meus livros com epigramas simples e improvisados, que traziam influências de Gay, Prior e os mais joviais poemas augustanos. Certa manhã, no desjejum, cheguei perto do desastre ao declamar, num tom de voz evidentemente embriagado, uma exaltação de júbilo orgiástico do século XVIII, um fragmento georgiano nunca registrado em livro, que era alguma coisa assim:
Cheguem mais perto, meus rapazes, com suas canecas de cerveja,
E bebam ao presente, antes que acabe;
Cada um empilhe uma montanha de bife em seu prato,
Pois comer e beber nos dá alívio:
Então encham seus copos,
Que a vida logo passará;
Quando você está morto, nunca bebe ao seu rei ou à sua garota!
Anacreonte tinha um nariz vermelho, assim diziam;
Que é que tem um nariz vermelho se você é alegre e feliz?
Deus me parta! Prefiro ser vermelho enquanto estou aqui,
Que branco como um lírio - e morto à metade do ano!
Então, Betty, minha dama.
Venha aqui me dar um beijo;
No inferno não há filha de taberneiro como essa!
Jovem Harry, empinado o mais reto que pode,
Logo perderá sua peruca e se jogará embaixo da mesa,
Mas encha suas taças e passe-nas adiante,
Antes embaixo da mesa que embaixo do chão!
Portanto, farreie e brinque.
Enquanto bebe sedenta:
Debaixo de sete palmos de terra é menos fácil rir:
O Diabo me bate feio! Eu mal posso andar,
E maldito seja eu se sou capaz de me levantar ou falar!
Aqui, taberneiro, mande Betty trazer uma cadeira;
Vou tentar ir para casa um pouco, que a minha mulher não está lá!
Portanto, me dê uma mão;
Eu não estou podendo me levantar,
Mas sou feliz enquanto estiver em cima da terra!
Foi por volta dessa época que concebi meu medo atual de fogo e trovões. Anteriormente indiferente a coisas assim, eu tinha agora um horror indizível delas; podia me esconder nos recantos mais escondidos da casa se os céus ameaçassem um espetáculo elétrico. Um de meus lugares preferidos para visitar durante o dia era o porão em ruínas da mansão que havia se incendiado, e em minhas fantasias podia visualizar como ela havia sido em seu auge. Numa ocasião, estarreci um aldeão, levando-o a um subterrâneo cuja existência eu parecia conhecer, apesar de estar oculto e esquecido há várias gerações.
Finalmente aconteceu o que eu temia há muito. Meus pais, alarmados pelos modos alterados e pela aparência de seu filho único, começaram a exercer, sobre meus movimentos, um tipo de espionagem que ameaçava resultar em desastre. Eu não havia dito a ninguém sobre minhas visitas à tumba, tendo guardado meu desígnio secreto com zelo religioso desde a infância; mas agora eu estava sendo forçado a tomar cuidado ao atravessar os labirintos do vale, pois poderia estar sendo seguido. Minha chave para a cripta ficava presa por uma corda ao redor do pescoço, e só eu sabia de sua presença. Eu nunca carregava para fora do sepulcro nenhuma das coisas com as quais ficava dentro de suas paredes.
Uma manhã, quando emergi da tumba úmida e tranquei as correntes do portão com uma mão não muito firme, vi em uma moita próxima, a face aterrorizante de um observador. Certamente o fim estava próximo; pois meu retiro havia sido descoberto e o objetivo de minhas jornadas noturnas revelado. O homem não se dirigiu a mim, portanto apressei-me em chegar em casa, num esforço em ouvir o que ele iria reportar ao meu pobre pai preocupado. Seriam minhas estadias além da porta trancada proclamadas ao mundo? Imagine meu deliciado assombro ao ouvir o espião informar a meu pai num sussurro cauteloso que eu tenho passado a noite no caramanchão do lado de fora da tumba; meus olhos adormecidos e entreabertos se fixaram na fenda onde o portão a cadeado estava entreaberto! Por qual milagre o observador foi iludido assim? Estou convencido agora de que um agente sobrenatural me protegeu. Ficando audacioso por essa circunstância mandada pelo céu, comecei a ir à cripta totalmente às claras, confiante que ninguém poderia testemunhar minha entrada. Por uma semana, degustei dos prazeres totais, que não posso descrever, que aquele ossuário proporcionava, quando a coisa aconteceu, e eu fui jogado a esta maldita moradia da mágoa e monotonia.
Eu não devia ter me aventurado a sair naquela noite; pois havia manchas de trovões nas nuvens, e uma fosforescência infernal se erguia do pântano no fundo do bosque. O chamado dos mortos, também, estava diferente. Ao invés da tumba na encosta, foi a mansão incendiada no alto da colina cujos demônios reinantes acenaram para mim com dedos invisíveis. Ao sair do bosque além das ruínas, contemplei ao luar envolto em brumas uma coisa que sempre esperei vagamente. A mansão, acabada há um século, mais uma vez assumia sua dignidade, cativando a visão; cada janela brilhava com o esplendor de muitas velas. Os coches da alta sociedade de Boston chegavam pela longa trilha, enquanto uma numerosa congregação de janotas empoados das mansões vizinhas chegava a pé. Misturado à multidão, achei que deveria estar entre os anfitriões ao invés de entre os hóspedes. No interior do salão, havia música, risos, e taças de vinho em cada mão. Reconheci vários rostos; talvez eu os conhecesse melhor se eles estivessem encarquilhados ou comidos pela morte e decomposição. Entre a multidão imprudente e incivilizada, eu era o mais selvagem e mais desregrado. Blasfêmias alegres eram derramadas em torrentes de meus lábios, e em acessos chocantes, eu não respeitava nenhuma lei de Deus ou da natureza.
De repente, um trovão, mais ressonante até mesmo que o alarido do festim bestial, atingiu o telhado e provocou um silêncio de pavor nos hóspedes turbulentos. Línguas vermelhas de chamas e manchas de carbonização engolfaram a casa; e os convidados, paralisados pelo terror de uma calamidade que parecia transcender os limites da natureza desgovernada, debandaram gritando pela noite. Eu fiquei sozinho, preso ao meu assento por um medo humilhante que nunca havia sentido antes.E então um segundo horror possuiu minha alma. Queimado vivo até as cinzas, meu corpo foi dispersado pelos quatro ventos; Eu jamais repousarei na tumba dos Hydes! Não estava meu caixão preparado para mim? Não tinha eu o direito de repousar até a eternidade entre os descendentes de Sir Geofrey Hyde? Sim! Eu clamaria minha herança de morte, mesmo que minha alma procure através das eras por outra morada corpórea que me represente na laje vaga na alcova da cripta. Jervas Hyde nunca partilhará o triste destino de Palinurus!
À medida que o fantasma da casa em chamas sumiu, encontrei a mim mesmo gritando e me debatendo loucamente nos braços de dois homens, um dos quais era o espião que me tinha seguido até a tumba. A chuva se derramava em torrentes, e sobre o horizonte do sul havia lampejos de raios que deveriam ter acabado de passar sobre nossas cabeças. Meu pai, com o rosto marcado de mágoa me observava, enquanto eu gritava minhas exigências de ser enterrado na tumba, freqüentemente advertindo meus captores para que me tratassem o mais gentilmente que pudessem. Um círculo escurecido no chão da mansão arruinada testemunhava um violento ataque dos céus: e desse local, um grupo de aldeões curiosos com lanternas estava cavando uma pequena caixa feita à mão em estilo antigo, que o raio havia revelado.
Cessando minha fútil e agora obsoleta resistência, observei os espectadores vendo o tesouro, e me foi permitido compartilhar suas descobertas. A caixa, cuja fechadura havia sido quebrada pelo impacto que a tinha trazido à luz, continha muitos papéis e objetos de valor, mas eu só tinha olhos para uma coisa. Era a miniatura de porcelana de um jovem numa elegante peruca cacheada, com as iniciais "J. H." entalhadas. O rosto me deixou espantado, era como se eu estivesse examinando meu espelho.
No dia seguinte, fui trazido a este quarto com janelas gradeadas, mas tenho sido informado de certas coisas por um servente idoso e de mente simples, a quem eu me apegara muito na infância, e que, como eu, amava o cemitério da igreja. Relatar minhas experiências no interior da cripta me trouxe apenas sorrisos penalizados. Meu pai, que me visita freqüentemente, declarou que eu nunca ultrapassei o porão fechado a corrente, e jura que o cadeado enferrujado não era tocado há cinqüenta anos quando ele o examinou. Ele até diz que toda a aldeia sabia de minhas jornadas até a cripta, e que eu fui visto várias vezes dormindo no caramanchão fora da fachada medonha, com olhos entreabertos fixados na abertura que revelava o interior. Contra essas declarações eu não tinha nenhuma prova tangível a oferecer, já que minha chave do cadeado havia sido perdida na confusão daquela noite de horrores. As coisas estranhas do passado que eu havia aprendido durante aqueles encontros noturnos com os mortos, ele considerava como frutos de minha vida inteira de sede de literatura entre os livros antigos da biblioteca da família. Se não fosse pelo meu velho servo Hiram, eu deveria estar agora completamente convencido de minha loucura.
Pois Hiram, leal até o fim, tinha fé em mim e me estimulou a tornar pública pelo menos parte da minha história. Uma semana atrás, ele arrebentou o cadeado cujas correntes mantinham a porta da tumba permanentemente entreaberta, e desceu com uma lanterna até suas profundezas sombrias. Numa laje numa alcova, ele encontrou um velho mas vazio caixão, cuja placa manchada tinha uma única palavra: Jervas. Eles haviam prometido que eu seria sepultado naquele caixão e naquela cripta.
O DEPOIMENTO DE RANDOLPH CARTER

Repito-vos, cavalheiros, que vosso interrogatório é inutil. Detende-me aqui para sempre, se quiserdes; prendei-me ou executai-me se tendes necessidade de uma vítima para propiciar a ilusão a que chamais justiça. Não posso porém, dizer mais do que já disse. Contei-vos, com toda a sinceridade, tudo de que me lembro. Nada foi distorcido ou escamoteado, e se alguma coisa permanecer vaga, é apenas devido à nuvem escura que caiu sobre meu espírito - essa nuvem e a natureza nebulosa dos horrores que a fizeram abater-se sobre mim.
Digo mais uma vez: não sei do que foi feito de Harley Warren, embora pense - quaserezo para isso - que ele está em oblivio pacífico, se é que existe, em algum lugar, coisa tão bem aventurada. É verdade que por cinco anos fui seu melhor amigo e que, em parte compartilhei de suas terríveis pesquisas sobre o desconhecido. Não negarei, conquanto minha memória esteja insegura e vaga, que essa vossa testemunha nos possa ter visto juntos, na estrada de Gainsville, caminhando na direção do Pântano do Cipreste Grande às onze e meia daquela noite tenebrosa. Que levávamos lanternas elétricas, pás e um curioso rolo de fio, a que se prendiam certos instrumentos, eu mesmo me disponho a afirmar, pois todas essas coisas desempenharam um papel importante naquela cena hedionda que continua gravada à fogo em minha memória abalada. Mas com relação ao que se seguiu e ao motivo pelo qual fui encontrado sozinho e aturdido na margem do pântano, na manhã seguinte, devo insistir em que nada sei, salvo o que já vos narrei repetidamente. Dizei-me que nada existe no pantano ou em suas proximidades que pudesse constituir o cenário daquele episódio aterrador. Respondo que que eu nada sabia além do que vi. Visão ou pesadelo, pode ter sido - e visão ou pesadelo espero desesperadamente que tenha sido - mas, no entanto, é tudo o quanto minha mente reteu do que ocorreu naquelas horas chocantes depois que saímos da vista dos homens. E por que Harley Warren não voltou, somente ele ou seu espectro - ou alguma coisa inominável que não sei descrever - poderão dizer.
Como já tive ocasião de afirmar, eu conhecia bem, e de certa forma dividia, os estudos fantásticos de Harley Warren. De sua vasta coleção de livros estranhos e raros sobre temas interditos, li todos os escritos nas línguas que domino, contudo esses são poucos em comparação aos escritos em idiomas que desconheço. Na maioria, acredito, são em árabe; e o compêndio de demoníaca inspiração que acarretou a tragédia - o livro que levava no bolso ao abandonar o mundo - estava escrito em caracteres que jamais ví em parte alguma. Warren jamais se dispôs a me dizer o que havia naquele livro. Quanto à natureza de nossos estudos... precisarei repetir ainda uma vez que já não conservo deles plena compreensão? Parece-me até misericordioso que seja assim, pois eram estudos terríveis, que eu levava a cabo mais por relutante fascinação que por inclinação verdadeira. Warren sempre me dominou e às vezes eu o temia. Lembro-me como estremeci ante sua expressão facial na noite anterior ao fato hediondo, enquanto ele falava sem cessar de sua teoria - por que certos cadáveres nunca se decompõem mas permanecem integros em suas tumbas por mil anos. No entanto, já não o temo mais, pois suspeito que ele conheceu horrores além do meu alcance. Agora temo por ele.
Mais uma vez repito: não tenho nenhuma lembrança clara de nosso intuito naquela noite. Decerto teria muito a ver com o livro que Warren levava consigo - aquele livro antigo, num alfabeto indecifrável e que lhe chegara da India um mês antes - mas juro que não sei o que esperávamos encontrar. Vossa testemunha declara que nos viu às onze e meia na estrada de Gainsville, seguindo na direção do Pântano do Cipreste Grande. É provável que isso seja verdade, mas não me lembro com nitidez. A imagem cauterizada em minha alma é apenas de uma cena, e deve ter sido bem depois da meia noite, pois via-se uma pálida lua crescente no céu vaporoso.
O lugar era um cemitério antigo. Tão antigo que eu me sobressaltava ante os inúmeros indícios de anos imemoriais. Era numa depressão profunda e úmida, coberta de mato alto, musgo e curiosas ervas rasteiras, envolvido por um vago fedorque minha fantasia ociosa associava absurdamente a pedras putrefatas. Por toda a parte havia sinais de abandono e decrepitude e eu parecia perseguido pela idéia de Warren: nós eramos as primeiras criaturas vivas a invadir um silêncio letal de séculos. Sobre a borda do vale, uma lua crescente, lânguida e enlanguescente, espreitava através dos vapores repulsivos que pareciam emanar de catacumbas ignotas, e seus raios débeis e bruxuleantes faziam-me discernir um aglomerado repelente de lápides, urnas, cenotáfios e mausoléus, todos esboroantes, cobertos de musgo e manchados de umidade, e em parte ocultos pela luxuriância obscena da vegetação insalubre.
A primeira impressão vívida que tenho de minha própria presença nessa necrópole terrível refere-se ao ato de deter-me com Warren diante de um certo sepulcro semi obliterado e de arrojar em seu interior certos fardos que, aparentemente estivéramos carregando. Notei então que trazia comigo uma lantérna elétrica e duas pás, ao passo que meu companheiro portava uma lanterna semelhante e um aparelho telefônico portátil. Não se disse qualquer palavra, pois o local e a missão pareciam-nos conhecidos. E sem delongas tomamos das pás e começamos a afastar as ervas, agrama e a terra da cova rasa e arcaica. Após expormos toda a sua superfície, que consistia em três imensas lages de granito, recuamos alguns passos para examinar o ossuário. Warren parecia estar fazendo alguns cálculos mentais. Depois voltou ao sepulcro e, usando a pá como alavanca, tentou erguer a laje que ficava mais próxima de uma ruína de pedra e que pode ter sido outrora um monumento. Não conseguindo seu intento, fez un gesto para que eu o auxiliasse. Por fim, nossos esforços combinados fizeram com que a pedra se soltasse. Levantamo-la e a arredamos do lugar.
Com a remoção da laje, ficou à vista uma abertura negra, da qual irrompeu um efluxo de gases miasmáticos, tão nauseantes que saltamos para trás, tomados de horror. Após um intervalo, entretanto, aproximamo-nos novamente da cova e achamos as exalações menos intoleráveis. Nossas lanternas revelaram o alto de um lance de degraus, dos quais gotejava um licor repugnante e que eram delimitados por paredes úmidas recobertas de bolor. E agora, pela primeira vez minha memória registra emissão de palavras. Warran falava-me longamente, em sua cálida voz de tenor, uma voz singularmente incólume ao ambiente lúgubre.
"Peço perdão por pedir-te que permaneças na superfície", disse ele, "mas seria criminoso permitir que alguém de nervos tão frágeis descesse até lá. Não podes imaginar, mesmo pelo que leste e pelo que eu te disse, as coisas que terei de ler e de fazer. Trata-se de um trabalho diabólico, Carter , e duvido que algum homem que não tenha a sensibilidade empedernida pudesse ver aquelas coisas e voltar vivo e são. Não é desejo ofender-te e Deus sabe o quanto eu gostaria de levar-te comigo. Mas de certa forma a responsabilidade é minha e eu não seria capaz de arrastar um feixe de nervos como tu à morte ou à loucura quase certa. Digo-te, não podes imaginar o que seja realmente a coisa! Mas prometomanter-te informadode cada passo meu pelo telefone - vês que disponho de fio suficiente para chegar ao centro da terra e voltar!"
Ainda ressoam em minha memória essas palavras, pronunciadas tranquilamente. E ainda me recordo de meus protestos. Eu parecia desesperadamente ansioso por acompanhar meu amigo para aquelas profundezas sepulcrais, mas ele se mostrava de uma obtinação inflexível. A certo momento, ameaçou abandonar a expedição caso eu insistisse. A ameaça tinha peso, pois só ele possuía a chave do que procurávamos. De tudo isso ainda me lembro, muito embora já não saiba que espécie de coisa buscávamos. Depois de haver obtido minha relutante aquiescência a seu plano, Warren pegou o rolo de fio e ajustou seus instrumentos. A um gesto seu, peguei um destes e sentei-me numa lápide vetusta e descolorida, junto da abertura recém-exposta. Depois ele apertou-me a mão, sobraçou o rolo de fio e desapareceu naquele indescritível ossuário.
Durante um minuto ainda percebi o brilho da lanterna e escutei o roçagar do fio, enquanto Warren o estendia pelo chão; mas o brilho da luz sumiu repentinamente, como se ele houvesse dobrado uma esquina na escada de pedra e quase ao mesmo tempo o som cessou igualmente. Eu estava só, porém ligado às profundezas desconhecidas por aqueles cordéis mágicos cuja superfície isolada verdejava sobre os raios esforçados do exangue quarto-crescente.
A cada momento eu consultava o relógio, à luz da lanterna elétrica e, tomado de ansiedade febril, procurava ouvir alguma coisa no receptor do telefone. Entretanto, durante mais de um quarto de hora nada ouvi. Então o instrumento emitiu um estalido e eu chamei meu amigo com voz tensa. Por apreensivo que me sentisse, eu não estava preparado entretanto para as palavras que subiram daquela cova hedionda, em tons mais alarmados e hesitantes do que eu já havia escutado de Harley Warren. Ele, que se despedira de mim com tamanha calma havia pouco, agora me chamava lá de baixo num sussurro titubeante, mais pressago que um grito sonoríssimo:
"Meu Deus! Se pudesse ver o que estou vendo!"
Não pude Responder. Mudo, só fiz esperar. Ouvi novamente as palavras agitadas:
Carter, é terrível... monstruoso... inacreditável!"
Dessa vez a voz não me faltou e despejei no aparelho um jorro de indagações excitadas. Aterrorizado, não cessava de repetir:"Warren, o que foi? O que foi?"
Mais uma vez escutei a voz de meu amigo, ainda repassada de medo e agora aparentemente impregnada de desespero:
"Não posso dizer-te, Carter! É demasiado incrível... não ouso contar... nenhum homem poderia saber e sobreviver... Santo Deus! Jamais sonhei com isso!"
Voltou o silêncio, apenas quebrado pela torrente de perguntas sobressaltadas que eu fazia. Ouvi então novamente a voz de Warren, num tom de delirante consternação:
"Carter! Pelo amor de Deus, repõe a Laje no lugar e sai disso se puderes! Deixa tudo mais e corre... é tua última oportunidade! Faz o que eu digo e não peça explicações!"
Eu escutava, mas só conseguia repetir minhas perguntas frenéticas. Em meu redor estavam as tumbas, a escuridão e as sombras; abaixo de mim, algum perigo que sobrepujava o alcançe da imaginação humana. Mas meu amigo corria mais perigo que eu e sobre meu medo passou um vago ressentimento de que ele me julgasse capaz de abandoná-lo em tal situação. Novos estalidos e após uma pausa, ouvi o grito angustiado de Carter:
"Te manda! Pelo amor de Deus, põe a laje no lugar e te manda, Carter!"
Alguma coisa na gíria juvenil de meu companheiro, evidentemente transtornado, liberou minhas faculdades. Formei e gritei uma resolução, "Warren, aguenta! Vou descer!" No entanto, diante dessa proposta o tom de meu interlocutor transformou-se num grito de completo desespero:
"Não! Não compreendes! É tarde demais... e por minha própria culpa. Põe a laje no lugar e corre... não há mais nada que tu ou outra pessoa possa fazer!"
Seu tom de voz mudou novamente, adquirindo dessa vez mais suavidade, como que traduzindo resignação sem esperança. Contudo, para mim ele permanecia tenso de ansiedade.
"Depressa... antes que seja tarde demais!"
Tentei não lhe dar ouvidos. Tentei quebrar a paralisia que me detinha e cumprir minhs promessa de descer para ajudá-lo. Seu próximo murmúrio, todavia, ainda me encontrou inerte, preso de puro horror.
"Carter... corre! Não adianta... tens de ir... antes um que dois... a laje..."
Uma pausa, mais estalidos, e depois a voz débil de Warren:
"Quase acabado agora... não dificultes ainda mais... cobre esses degraus malditos e foge para salvar a vida... estás perdendo tempo... adeus, Carter... não voltarei a ver-te."
Nesse ponto, o murmúrio de Warren converteu-se em grito, um grito que aos poucos se transmudou em uivo, carregado de todo o horror das eras...
"Malditas coisas infernais... legiões... meu Deus! Te manda! Te manda! TE MANDAAAAA!!!
"Depois disso, caiu o silêncio. Ignoro por quantos éons permaneci sentado ali, estupefato. Sussurrando, murmurando, gritando, berrando naquele telefone. Vezes sem conta, no transcurso daqueles éons, sussurrei, murmurei, chamei, gritei e berrei "Warrren! Warren; Responde... estás aí?
Foi então que sobreveio o cúmulo do horror... a cois ainacreditável, inimaginável, quase impronunciável. Já disse que foi como se passassem éons depois de Warren emitir sua derradeira advertência desesperada, e que apenas meus gritos quebravam agora o silêncio horrífico. Contudo depois de algum tempo houve um novo estalido no telefone e eu apurei os ouvidos. Mais uma vez chamei: "Warren estás aí?, e como resposta ouvi aquilo que lançou essa nuvem sobre minha alma. Não tento, senhores, explicar aquilo... aquela voz... nem posso abalançar-me a descrevê-la em minúcia, uma vez que as palavras iniciais roubaram minha consciência e criaram um vazio mental que se estende ao momento em que despertei no Hospital. Direi que a voz era profunda? Cava? Gelatinosa? Remota? Sobrenatural? Inumana? Desencarnada? Que direi? Ela marcou o fim de minha experiência e é o fim de minha história. Eu a escutei, e de nada mais tomei conhecimento... escutei-a enquanto permanecia sentado, petrificado naquele cemitério desconhecido do vale, em meio às pedras carcomidas e aos túmulos em ruínas, junto à vegetação pútrida e aos vapores miasmáticos... escutei-a subindo das profundezas mais absconsas daquele maldito sepulcro aberto, enquanto assistia à dança de sombras amorfas, necrófagas, à luz mortiça de uma lua exangue.
E o que ela disse foi:
"IDIOTA, WARREN ESTÁ MORTO.....!"
O FESTIVAL

Efficiut Daemones, ut quae non sunt, sic tamen quasi sint, conspicienda bominibus exhibeant.
Lactantius


Eu estava longe de casa, e o feitiço do mar oriental havia caído sobre mim. Ao crepúsculo, eu o ouvia batendo nas rochas e sabia que ele ficava logo depois do monte onde os salgueiros se contorciam contra o céu claro e as primeiras estrelas da noite. E como meus pais haviam me chamado para a velha cidade mais adiante, atravessei a neve rasa e recém-caída ao longo da estrada que subia até onde Aldebarã bailava por entre as árvores; na direção da cidade muito antiga, que eu nunca tinha visto, mas com a qual várias vezes sonhara.
Era o Yuletide, que os homens chamam de Natal, embora saibam em seus corações que é mais antigo que Belém e a Babilônia, mais velho que Mênfis e a Humanidade. Era o Yuletide, e eu havia vindo finalmente à antiga cidade costeira onde minha gente havia habitado e mantido a festividade mesmo nos velhos tempos, quando ela era proibida; onde eles também haviam instruído seus filhos a manterem o festival uma vez a cada século, para que a memória dos segredos primais não fosse esquecida. Minha gente era antiga, e já eram antigos mesmo quando esta terra foi colonizada, três séculos atrás. E eles eram estranhos, porque tinham vindo como um povo furtivo e obscuro dos jardins de papoulas narcóticas do sul, e falavam outra língua antes de aprenderem a língua dos pescadores de olhos azuis. E eles estavam dispersos, e compartilhavam apenas os rituais de mistérios que nenhum vivente poderia entender. Eu era o único que tinha voltado aquela noite à velha cidade pesqueira, como rezava a lenda que apenas os pobres e solitários lembravam.
Então, além do cume da colina, vi Kingsport com seus moinhos e campanários, telhados e chaminés, cais e pequenas pontes, salgueiros e cemitérios; intermináveis labirintos de ruas íngremes, estreitas e tortas, vertiginosas torres de igrejas que o tempo não ousou tocar; uma confusão incessante de casas coloniais amontoadas e espalhadas em todos os ângulos e níveis como os blocos desordenados dos folguedos de ulna criança; antiguidades pairando com asas cinzentas abertas em telhados duplos embranquecidos pelo inverno; janelas cortinadas, uma a uma piscando na escuridão fria para se juntar a Orion e as estrelas arcaicas. E contra os cais apodrecidos o mar se chocava; o mar, imemorial e cheio de segredos, do qual as pessoas tinham vindo nos tempos antigos.
Ao lado do topo da rua, uma elevação ainda mais alta começava, desolada e exposta ao vento, e vi que era um campo santo, onde lápides negras fincavam-se fantasmagoricamente através da neve, como as unhas apodrecidas do cadáver de um gigante. A rua era vazia e solitária, e às vezes eu pensava ouvir, no vento, um horrível e distante gemido, como um enforcamento. Eles haviam enforcado quatro parentes meus por bruxaria em 1692, mas eu não sabia exatamente onde.
No cruzamento da rua com a ladeira voltada para o mar, fiquei atento aos sons alegres de um entardecer de aldeia, mas não os escutei. Então lembrei da época, e achei que esse velho povo puritano possivelmente tinha costumes natalinos estranhos a mim, cheios de orações silenciosas. Então, depois que eu não ouvi sons alegres nem vi peregrinos, fiquei observando as casas silenciosamente iluminadas, e os muros sombrios de pedras, onde as placas de velhas lojas e tavernas batiam à brisa salgada, e as aldravas grotescas penduradas nas portas cintilavam ao longo das ruas sem pavimento, à luz de pequenas janelas cortinadas.
Eu havia visto mapas da cidade, e sabia onde encontrar a casa da minha gente. Foi dito que eu seria reconhecido e bem-vindo, pelas velhas tradições da aldeia; então me apressei pela Back Street até a Cicle Court, e atravessei a neve fresca sobre toda a laje que pavimentava a cidade, até onde a Green Lane levava aos fundos da Market House. Os velhos mapas ainda serviam bem, e eu não tive nenhum problema; embora em Arkham, devem ter mentido quando disseram que passavam bondes por ali, já que não vi um único fio no alto. A neve teria coberto os trilhos, de qualquer modo. Estava satisfeito por ter preferido andar, pois a aldeia branca tinha parecido muito bonita da colina; e agora eu estava ansioso em bater à porta da minha gente, a sétima casa à esquerda na Green Lane, com um antigo telhado pontudo e segundo andar ressaltado, tudo construído antes de1650.
Havia luzes dentro da casa quando me dirigi a ela, e vi pelas janelas de grades cruzadas que deveria estar muito próxima de seu estado antigo. A parte superior sobressaia à rua estreita e coberta de grama e quase encontrava a parte que sobressaia da casa em frente, de forma que me encontrava quase num túnel, com o degrau de pedra da porta totalmente coberto de neve. Não havia calçada, mas muitas casas tinham portas altas que eram alcançadas por degraus duplos com corrimãos de ferro. Era uma cena estranha, e como eu era um estranho à Nova Inglaterra, nunca havia visto algo assim antes. Embora isso tenha me agradado, eu teria saboreado melhor se houvesse pegadas na neve, pessoas nas ruas e algumas janelas fechadas sem cortinas.
Quando sondei a antiga aldrava de ferro, fiquei com um pouco de medo. Algum temor havia se acumulado em mim, talvez por causa da estranheza da minha herança, a falta de movimento e o silêncio estranho da manhã naquela velha cidade de costumes bizarros. E quando minha batida foi respondida, fiquei completamente amedrontado, porque não havia ouvido nenhum passo antes da porta abrir com um rangido. Mas não fiquei com medo por muito tempo, pois o homem idoso de pijama e chinelos na entrada tinha um rosto brando que me tranqüilizou; e apesar de ter feito sinais de que era surdo, escreveu uma curiosa e antiga saudação com o estilete e a tabuleta de cera que carregava.
Acenou para que o seguisse até uma sala baixa, iluminada por velas, com caibros expostos e móveis escuros, rijos e esparsos, do século XVII. O passado estava vivo ali, nenhum atributo tinha sido perdido. Havia uma lareira cavernosa e uma máquina de fiar próxima na qual uma mulher idosa, usando um manto e uma touca comprida, sentava-se na minha direção, fiando silenciosamente, apesar da época festiva. Um desalento indefinido parecia pairar sobre o lugar, e eu estava bestificado pelo fogo não estar aceso. O quarto em frente às janelas cortinadas parecia estar ocupado, embora eu não tivesse certeza. Eu não gostei de tudo o que vi, e senti o temor novamente. Este temor ficou mais forte do que estava antes de ser abrandado. Quanto mais olhava para o rosto brando do velho, mais a sua brandura excessiva me aterrorizava. Os olhos nunca se moviam, e a pele assemelhava-se à cera. Finalmente fiquei convencido de que não era realmente um rosto, mas uma habilidosa máscara demoníaca. Suas mãos fantásticas, curiosamente enluvadas, escreveram na tabuleta com impressionante habilidade e me disseram que eu deveria esperar um pouco para ser levado ao local da festividade.
Apontando uma cadeira, uma mesa e uma pilha de livros, o velho agora deixou a sala; e quando me sentei para ler, vi que os livros estavam esbranquiçados e bolorentos, e que incluíam o velho Maravilhas da Ciência, de Morryster, o terrível Saducismus Triumpharus, de Joseph Glanvil, publicado em 1681, o chocante Daemonolarreia, de Remigius, impresso em 1681 em Lyons, e o pior de todos, o impronunciável Necronomicon, do árabe louco Abdul Al-hazred, na tradução latina proibida de Olaus Wormius; um livro que eu nunca tinha visto, mas do qual ouvira sussurrarem coisas monstruosas. Ninguém falou comigo, mas eu podia ouvir o bater das placas ao vento no lado de fora, e o zumbido da máquina de fiar enquanto a velha de touca continuava silenciosamente a fiar e fiar. Achei a sala, os livros e as pessoas, muito mórbidas e inquietantes, mas por causa de uma velha tradição de festividades estranhas que meus pais tinham me intimado a seguir, resolvi esperar coisas esquisitas. Então tentei ler, e logo comecei a tremer, absorvido por algo que descobri ser o malfadado Necronomicon, um pensamento e uma lenda muito hedionda para sanidade ou consciência, mas eu me distraí dele quando supus ouvir o fechar de uma das janelas que ficava em frente à lareira, como se ela tivesse sido aberta furtivamente. Pareceu seguir-se um zumbido que não era da máquina de fiar da velha. Não pude ouvir bem, no entanto, pois a velha estava fiando vigorosamente, e o relógio antigo soara as horas. Depois disso, perdi a sensação de que haviam pessoas no local, e estava lendo intensa e tremulante quando o velho voltou, calçado de botas e vestido numa roupa folgada antiga, e sentou no mesmo banco, de forma que eu não podia vê-lo. Era certamente uma espera nervosa, e o livro blasfemo nas minhas mãos a fazia duas vezes maior. Quando soaram onze horas, entretanto, o velho se levantou, deslizou até uma arca maciça esculpida que estava a um canto, e pegou dois mantos encapuzados; um dos quais colocou, e com o outro cobriu a velha, que tinha parado seu fiar monótono. Então os dois se dirigiram à porta exterior; a mulher se arrastou, coxeando, e o velho, depois de pegar o mesmo livro que eu estava lendo, acenou para mim enquanto colocava o capuz sobre o rosto imóvel ou máscara.
Saímos para as ruas tortuosas e escuras daquela cidade incrivelmente antiga; saímos enquanto as luzes nas janelas cortinadas desapareciam uma a uma, e a estrela do Cão espreitava a turba de figuras cobertas e encapuzadas que safam silenciosamente de cada porta e formavam uma procissão monstruosa rua acima, passando pelas placas ruidosas, pelos frontões antediluvianos, pelos telhados emaranhados e pelas janelas de grades cruzadas; atravessando ruas precipituosas, onde casas decadentes cobriam-se e desagregavam-se, deslizando por pátios abertos e cemitérios de igrejas, onde postes de luz faziam as constelações parecerem medonhamente bêbadas.
Em meio à multidão, segui meus dois guias silenciosos; empurrado por cotovelos que pareciam extraordinariamente macios, e pressionado por peitos e estômagos que pareciam anormalmente felpudos; mas sem nunca ver um rosto e nunca ouvir uma palavra. Em frente, as colunas sinistras se arrastavam, e eu vi que todos os peregrinos convergiam a uma espécie de povo de becos loucos no topo de uma colina alta no centro da cidade, onde se elevava uma grande igreja branca. Eu a tinha visto do alto da estrada quando olhei a noite caindo em Kingsport, e ela me tinha feito tremer, porque Aldebarã havia parecido balançar-se por um momento na torre fantasmagórica.
Havia um espaço aberto ao redor da igreja; uma parte era um cemitério com lápides espectrais, e a outra era uma quadra semipavimentada, que tinha sido praticamente toda varrida da neve pelo vento, e enfileirada com casas antigas e mal-conservadas, com telhados pontudos e frontões protuberantes. Fogos-fátuos dançavam sobre as tumbas, revelando alamedas repugnantes, embora estranhamente não fizessem sombra. Depois do cemitério, onde não havia casas, podia ver acima do cume da colina e observar o cintilar das estrelas no porto, pois a cidade era invisível no escuro. Vez por outra, uma lanterna meneava horrivelmente através de becos tortuosos, em seu caminho para juntar-se à turba, que agora estava entrando furtiva e silenciosamente na igreja. Eu esperei até que a multidão houvesse penetrado pela porta negra, e até que todos os que ali se acotovelavam os tivessem seguido. O velho estava puxando minha manga, mas eu estava determinado a ser o último. Atravessando a soleira em direção ao templo de escuridão desconhecida e cheio como uma colméia, virei-me uma vez para olhar o mundo exterior, onde uma fosforescência no cemitério fazia um brilho doentio no pavimento da colina, e ao fazer isso, estremeci. Pois embora o vento não houvesse deixado muita neve, tinham sobrado umas poucas porções no terreno perto da porta; e naquela olhada para trás, pareceu aos meus olhos confusos que não havia nenhuma marca de pegadas, nem mesmo as minhas.
A igreja estava escassamente iluminada por todas as lanternas que haviam sido trazidas pelos fiéis, e a maior parte da turba já havia desaparecido. Eles tinham afluído para a nave entre os bancos altos e as portas sem retorno das criptas, que se abriram repulsiva e largamente, logo depois do púlpito, e estavam agora se contorcendo ruidosamente. Eu segui, calado, os degraus gastos até a cripta escura e sufocante. O séqüito daquela fila silenciosa em marcha noturna me parecia muito horrível, e eu os vi movendo-se sinuosamente ao interior de uma tumba de veneração que parecia mais horrível ainda. Então notei que o chão da tumba tinha uma fresta na qual a multidão se esgueirava, e em um momento, todos nós estávamos descendo uma escadaria agourenta de pedra bruta cortada; uma escadaria em espiral estreita, úmida e peculiarmente perfumada, que perfurava interminavelmente em direção às entranhas da colina, passando por paredes monótonas de blocos de pedras gotejantes e argamassa esmigalhada. Foi uma descida traumatizante e silenciosa, e depois de um intervalo horrível, percebi que as paredes e degraus estavam mudando sua natureza, como se fossem cinzeladas da rocha sólida. O que me perturbou principalmente foi que as miríades de passos não faziam sons e não produziam ecos. Depois de uma descida que parecia durar eras, vi algumas passagens laterais ou covas, que conduziam de recantos desconhecidos de escuridão a esta trilha de mistério noturno. Logo elas ficaram excessivamente numerosas, como catacumbas ímpias de ameaças inomináveis; e seu odor pungente de decadência aumentava quase insuportavelmente. Eu sabia que nós devíamos ter atravessado a montanha e estávamos agora abaixo da própria Kingsport, e eu estremeci ao pensar que uma cidade poderia ser tão velha e possuir subterrâneos tão diabólicos.
Então vi o bruxulear lívido de uma luz pálida, e ouvi o marulho insidioso de águas escuras. Novamente estremeci, porque eu não havia gostado das coisas que a noite tinha trazido, e desejava amargamente que nenhum antepassado tivesse me obrigado a este rito primitivo. À medida que os degraus e a passagem ficavam mais largos, eu ouvi outro som, o lamento agudo de uma flauta débil; e de repente surgiu na minha frente a paisagem ampla de um mundo interior: uma costa fungosa e vasta, iluminada por uma coluna que vomitava uma doentia chama esverdeada, e banhada por um largo rio oleoso que fluía dos abismos assustadores e desconhecidos para se juntar à baía negra do oceano antiqüíssimo.
Ofegando, à beira de desmaiar, olhei para o jardim profano de imensos cogumelos, fogo leproso e água viscosa, e vi a turba encapada formando um semicírculo ao redor do pilar em chamas Era o rito do Yule, mais antigo do que o Homem, e fadado a sobreviver a ele; o rito primitivo do solstício e a promessa de primavera após a neve; o rito do fogo e das plantações, luz e música. E nas grutas estígias, eu os vi fazer o rito, adorar o pilar doentio de chamas, e atirar na água punhados da vegetação que reluziam verdes ao brilho clórico. Vi isso e algo agachado amorficamente, distante da luz, tocando ruidosamente uma flauta; e enquanto a coisa tocava, pensei ouvir sibilos nocivos e abafados na escuridão inimiga onde eu não podia ver. Mas o que mais me aterrorizou foi a coluna de chamas; brotando vulcanicamente das profundezas inconcebíveis, sem produzir nenhuma sombra, como uma chama deveria fazer, e agasalhando a rocha nitrosa com um azinhavre sórdido e venenoso. Toda aquela combustão fervente não fazia nenhum calor, mas apenas umidade de morte e decomposição.
O homem que tinha me trazido agora até um ponto diretamente ao lado da chama odienta, fez passes cerimoniais rígidos para o semicírculo, à sua frente. Em certos estágios do ritual, faziam reverências em que tinham de se agachar, especialmente quando ele segurou acima de sua cabeça aquele detestável Necronomicon que trouxera consigo; e eu compartilhei todas as reverencias, porque eu tinha sido convocado a este festival pelos escritos de meus ancestrais. Então o velho fez um sinal ao flautista semi-oculto nas trevas, cujo toque logo mudou de um zumbido fraco para um zumbido escasso mais alto em outra escala; precipitando um horror inimaginável e inesperado. Com tal horror, quase afundei na terra coberta de liquens, trespassado por um temor que não pertencia a este ou a nenhum outro mundo, mas apenas aos espaços enlouquecedores entre as estrelas.
Vindas da inimaginável escuridão além do fulgor gangrenoso da chama fria, das léguas tartáricas pelas quais o rio oleoso corria sobrenatural, oculta e obscuramente surgiu uma horda de seres alados e híbridos domesticados, que nenhum olho são jamais poderia captar ou nenhum cérebro normal jamais poderia recordar, batendo ritmicamente suas asas. Eles não eram propriamente nem toupeiras, nem abutres, nem formigas, nem morcegos vampiros, nem seres humanos decompostos, mas alguma coisa que eu não posso e não devo recordar. Eles sacudiam um pouco seus pés cobertos de teias e um pouco suas asas membranosas; e quando alcançaram a turba de celebrantes, as figuras cobertas as pegaram e montaram, e saíram, uma a uma, cavalgando ao longo da extensão daquele rio mal-iluminado, em direção a poços e galerias de pânico onde nascentes venenosas mantinham cataratas ocultas.
A velha fiandeira tinha ido com a turba, e o velho só ficara porque eu tinha recusado quando ele tentou me motivar a pegar um animal e cavalgá-lo como o resto. Eu vi, quando cambaleei sobre meus pés, que o flautista amorfo havia desaparecido, mas aqueles dois monstros estavam esperando pacientemente. Quando recuperei o equilíbrio, o velho tirou seu estilete e a tabuleta e escreveu que ele era o representante dos meus ancestrais que tinham fundado o culto do Yale neste local antigo; que tinha sido decretado que eu voltaria, e que os mistérios mais secretos ainda estavam para ser apresentados. Ele escreveu isso com mão muito velha, e como eu ainda hesitava, puxou de sua túnica folgada um anel e um relógio, ambos com os símbolos da minha família, para provar que ele era o que dizia ser. Mas era uma prova revoltante, porque eu sabia por papéis velhos, que o relógio tinha sido enterrado com meu tatatataravo em 1698.
Em seguida, o velho tirou o capuz e apontou para a semelhança da família em seu rosto, mas eu apenas estremeci, porque estava certo de que aquele rosto era apenas uma máscara demoníaca. Os animais alados estavam agora arranhando impacientemente os líquens, e eu vi que o velho estava ele mesmo quase impaciente. Quando uma das coisas começou a se mexer para ir embora, ele se virou rapidamente para detê-la; então seu movimento repentino desalojou a máscara de cera de que outrora deve ter sido sua cabeça. E então, porque aquela posição de pesadelo me barrava à escada de pedra de onde tínhamos vindo, eu me joguei no rio oleoso que borbulhava de algum lugar das cavernas até o mar; me joguei naquele suco putrefato dos horrores do interior da Terra, antes que a loucura de meus gritos trouxesse toda aquela legião mortuária que esses abismos pestilentos ocultavam.
No hospital, disseram-me que eu havia sido encontrado semicongelado no porto de Kingsport ao alvorecer, agarrado ao tronco flutuante que o acaso mandou para me salvar. Eles me disseram que eu tinha pego a bifurcação errada na estrada da colina na noite anterior e caído dos penhascos no Ponto Laranja; uma coisa que deduziram das pegadas encontradas na neve. Não havia nada que eu pudesse dizer, porque tudo estava errado. Tudo estava errado, com as janelas largas mostrando um mar de telhados nos quais apenas um em cinco era antigo, e o som de bondes e motores nas ruas abaixo. Eles insistiram que esta era Kingsport, e eu não podia negar. Quando fiquei delirante ao ouvir que o hospital ficava perto do velho cemitério da igreja na colina central, eles me mandaram ao Hospital Santa Maria, em Arkham, onde eu poderia ser mais bem tratado. Gostei de lá, pois os médicos tinham mentes abertas, e até me emprestaram sua influência para obter a cópia cuidadosamente guardada de contestáveis Necronomicon de Al-hazred, da biblioteca da Universidade de Miskatonic. Eles disseram alguma coisa sobre uma "psicose", e concordei que eu deveria tirar todas as obsessões mórbidas de minha mente.
Lendo o hediondo capítulo, estremeci duplamente porque não era realmente novo para mim. Eu o tinha visto antes, deixe as pegadas dizerem o que eles quiserem; e seria melhor esquecer onde eu o tinha visto. Não havia ninguém - nas horas diurnas - que poderia me lembrar disso; mas meus sonhos eram cheios de terror, devido às frases que não devo citar. Ouso citar apenas um parágrafo, traduzido em nossa língua como posso, do estranho Baixo Latim.
As cavernas mais inferiores, escreveu o árabe louco, não são para a compreensão dos olhos que vêem; pois suas maravilhas são estranhas e terríveis. Amaldiçoado o chão onde pensamentos mortos vivem em novos e estranhos corpos, e maligna a mente que é mantida por nenhuma cabeça. Como Ibn Schacabao sabiamente disse, feliz é a tumba onde nenhum mago foi sepultado, e feliz é a cidade onde, à noite, todos seus magos são cinzas. Pois é um velho rumor que a alma dos levados pelo demônio não se precipita dos restos de sua carne, mas engorda e instrui o próprio verme que o mastiga; até que da decomposição surge uma vida horrenda, e os estúpidos escavadores da cera da terra astutamente se mobilizam para criar monstros para nos afligir. Grandes buracos são cavados secretamente onde os poros da Terra deveriam bastar e as coisas que deviam rastejar aprendem a andar.
VENTO FRIO


PERGUNTAS-ME por que receio as rajadas de vento frio; por que tremo mais que as pessoas comuns ao entrar num aposento gélido e sinto náusea e repulsa quando a friagem da noite se insinua, furtiva, pelo calor de um suave dia de outono. Há quem diga que eu reajo ao frio de modo semelhante ao que outros reagem ao fedor, e serei o último a desmentir essa impressão. O que farei será relatar a situação mais horripilante em que já me encontrei e deixar a ti a tarefa de julgar se ela representa ou não uma explicação satisfatória para essa minha esquisitice.
É falso imaginar que o horror esteja associado indissoluvelmente com o negrume, o silêncio, a solidão. Eu o conheci no esplendor fulgurante de uma tarde de sol, em meio ao clangor da metrópole e no ambiente apinhado de uma pobre e comuníssima casa de pensão, tendo a meu lado uma senhoria prosaica e dois homens robustos. Em meados de 1923, eu conseguira um emprego enfadonho e pouco rendoso numa revista, em Nova Iorque; e na impossibilidade de pagar o aluguel de uma moradia decente, comecei a vagar de uma pensão barata para outra, em busca de um quarto que combinasse as qualidades de limpeza adequada, mobiliário tolerável e preço bastante módico. Constatei, antes que passasse muito tempo, que só me restava optar entre diferentes males; entretanto, pouco depois dei com uma casa na Rua 14 Oeste que me repugnava muito menos do que as outras que eu havia experimentado.
Era uma mansão de grés pardo, com quatro pavimentos, que datava aparentemente de fins da década de 1840, com mármores e madeirames cuja magnificência enodoada e manchada lembrava que no passado o prédio conhecera altos níveis de elegante opulência. Os quartos, amplos e de enorme pé-direito, decorados com um papel de parede inacreditável e com comijas ridiculamente complicadas, tinham um deprimente bafo de bolor, bem como um vago cheiro de cozinha; entretanto, o chão era limpo, a roupa de cama bastante aceitável e a água quente nem sempre estava fria ou desligada, de modo que vim considerar a casa como um lugar pelo menos suportável para hibernar até poder realmente voltar a viver. A senhoria, uma espanhola desmazelada e quase barbada, chamada Herrero, não me amolava com mexericos ou reclamações a respeito da luz que eu deixava acesa até tarde em meu quarto, no terceiro andar, dando para a rua; e os demais pensionistas eram tão sossegados e calados quanto se poderia desejar. Eram na maioria espanhóis, só um pouco acima do nível mais grosseiro e ínfimo. O único motivo realmente sério de aborrecimento era o ruído dos bondes na rua.
Eu já estava residindo ali bem umas três semanas quando ocorreu o primeiro incidente insólito. Certa noite, por volta das oito horas, escutei um barulho como que de líquido que caísse no chão, e de repente me dei conta que já fazia algum tempo que o ar estava impregnado de um penetrante odor de amônia. Olhando em torno, vi que o teto estava molhado e gotejante; parecia que a infiltração provinha de um canto do lado que dava para a rua. Ansioso por cortar o mal pela raiz, desci depressa para falar à senhoria, que me garantiu que o problema seria logo resolvido.
- El doctor Muñoz - comentou ela, subindo as escadas correndo, em minha frente - deve ter derramado seus produtos químicos. Está fraco demais para cuidar de si próprio... cada vez mais fraco... pero no tiene nadie que pueda ayudarlo. E muito esquisito com essa doença dele... toma banhos de cheiros estranhos o dia inteiro, nem pode ficar nervoso ou sentir calor. Ele mesmo arruma o quarto... o quartinho dele vive cheio de garrafas e máquinas e ele não pratica mais a medicina. Mas antigamente ele foi famoso... mi padre ouviu falar dele em Barcelona... e há poco tiempo tratou o braço do bombeiro que cuida do encanamento e que começou a doer de repente. Ele nunca sai, só vai até o terraço, e mi hijo, Esteban, traz, para ele comida, roupa limpa, remédios e produtos químicos. Diós, a quantidade de sal amoníaco que esse hombre usa para se refrescar!
A Sra. Herrero desapareceu pela escada do quarto andar e eu voltei para meu quarto. A amônia parou de pingar e eu sequei a que havia caído. Enquanto abria a janela para arejar o cômodo, ouvi os passos pesados da senhoria no andar de cima. Quanto ao Dr. Muñoz, eu nunca havia escutado seus passos, lentos e macios. Só havia escutado um ruído que parecia ser o de um mecanismo com motor a gasolina. Fiquei a imaginar, por um momento, qual poderia ser a estranha enfermidade desse homem e se sua recusa obstinada em aceitar auxílio não resultaria de uma excentricidade infundada. Lembro-me de ter tido um pensamento banal, o de quanto é patética a situação de uma pessoa eminente que decaiu socialmente.
Talvez eu jamais viesse a conhecer o Dr. Muñoz se não fosse o ataque cardíaco que de repente me acometeu numa tarde em que eu estava escrevendo em meu quarto. Médicos haviam-me falado do perigo que representam tais crises, e eu sabia que não havia tempo a perder; por isso, ao me recordar do que a senhoria tinha dito sobre a ajuda que o inválido prestara ao bombeiro, arrastei-me pela escada e bati debilmente à porta do quarto que ficava em cima do meu. Minha batida foi respondida em bom inglês por uma voz curiosa, mais ou menos à direita, que me indagou o nome e profissão. Uma vez respondidas as perguntas, abriu-se um pouco a porta ao lado daquela em que eu batera.
Recebeu-me uma lufada de ar frio; e embora o dia fosse um dos mais tórridos do fim de junho, tive um estremecimento ao transpor a porta e entrar num espaçoso apartamento, cuja decoração suntuosa e de bom gosto constituiu uma surpresa naquele ninho de penúria e miséria. Um sofá dobrável atendia, agora de dia, à sua função de sofá, e o mobiliário de mogno, o magnífico papel de parede, as pinturas antigas e as esplêndidas estantes de livros indicavam antes o estúdio de um fidalgo que um quarto de pensão. Percebi então que o quarto que ficava sobre o meu - o quartinho com garrafas e máquinas, mencionado pela Sra. Herrero - era simplesmente o laboratório do doutor e que seus aposentos principais ficavam naquele amplo apartamento adjacente, cujas alcovas corretas e o grande quarto de banho lhe permitia ocultar toda roupa e objetos gritantemente utilitários. O Dr. Muñoz, evidentemente, era um homem com berço, cultura e excelente gosto.
A figura que eu tinha diante de mim era a de um homem baixo, mas muito bem proporcionado, trajado numa indumentária um tanto formal, de corte e feitio perfeitos. Um rosto bem-feito, de expressão senhoril, mas em nada arrogante, tinha a orná-lo uma barba aparada e um pouco grisalha, enquanto um pincenê antiquado se antepunha a olhos grandes escuros, equilibrando-se num nariz aquilino que dava um toque mourisco a uma fisionomia em tudo mais marcadamente celtibérica. Uma cabeleira basta e bem-tratada, que indicava visitas regulares de um barbeiro, partia-se com muita elegância sobre a testa alta. E toda a impressão que aquele vulto transmitia era de acentuada inteligência, origens nobres e excelente educação.
Não obstante, ao contemplar o Dr. Muñoz naquela lufada de ar frio, fui tomado de uma repugnância que nada em seu aspecto poderia justificar. Somente sua tez, que se inclinava à palidez e a frieza do toque de sua mão poderiam ter dado uma base física a essa sensação, porém mesmo essas coisas teriam de ser relevadas, dada a notória invalidez do homem. É ainda possível que tenha sido aquele frio singular que me indispôs, pois tamanha gelidez era anormal num dia tão quente, e o anormal sempre desperta aversão, suspeita e temor.
No entanto, a repulsa logo cedeu lugar à admiração, uma vez que a extrema perícia daquele estranho médico se manifestou incontinenti, a despeito da algidez e do tremor de suas mãos exangues. A um olhar ele compreendeu minhas necessidades, atendendo-as com habilidade de mestre; enquanto me assistia, consolava-me com voz harmoniosamente modulada, embora inusitadamente oca e sem timbre, assegurando-me ser o mais implacável dos inimigos da morte, e que havia dissipado sua fortuna e perdido todos os amigos numa vida inteira de experiêcias extravagantes, dedicadas à repressão e extirpação de tamanho flagelo. Parecia haver nele um certo fanatismo benevolente, e ele não cessava de divagar, quase garrulamente, enquanto me auscultava o peito e preparava uma beberagem de drogas trazidas de seu pequeno laboratório. Era evidente que a companhia de uma pessoa bem-nascida representava para ele uma rara novidade naquele ambiente de indigência e o levava a uma desusada loquacidade, ao ser empolgado por recordações de dias melhores.
Sua voz, embora estranha, era ao menos apaziguadora; e eu não percebia sequer o som de sua respiração enquanto ele pronunciava aqueles longos períodos, tão cheios de lhaneza. O doutor procurava afastar meus pensamentos da crise cardíaca, discorrendo sobre suas teorias e experiências. Lembro-me bem do tato com que ele procurou consolar-me da debilidade de meu coração, insistindo em que a vontade e a consciência são mais fortes do que a própria vida orgânica, de forma que se uma organização física for originalmente saudável e preservada com cuidado pode, mediante um realce cientifico dessas qualidades, reter uma espécie de animação nervosa, apesar das mais sérias lesões, defeitos ou mesmo ausências no conjunto de órgãos específicos. Algum dia, dis-se-me ele meio a brincar, poderia me ensinar a viver (ou ao menos manter alguma espécie de existência consciente) até mesmo sem coração! Quanto a si, afligia-o uma série de enfermidades que exigiam um regime rigorosíssimo, que incluía o frio constante. Qualquer elevação marcada da temperatura poderia, caso se prolongasse, afetá-lo de maneira fatal; e a frialdade de sua moradia, cerca de 13º centígrados, era mantida por um sistema absorvente de arrefecimento a amônia. As bombas do sistema eram impulsionadas pelo motor a gasolina que eu já escutara de meu quarto.
Aliviado de minha crise num tempo maravilhosamente breve, deixei aqueles aposentos frígidos como discípulo e servidor do talentoso recluso. Depois disso, fiz-lhe várias visitas, devidamente agasalhado. Ouvia-lhe o relato de pesquisas secretas e resultados quase espantosos, e estremecia um pouco ao examinar os volumes incomuns e inacreditavelmente antigos em suas estantes. Por fim, convém acrescentar, fiquei quase curado para sempre de minha doença, devido à sua terapia tão efetiva. Ao que parece, ele não desdenhava os encantamentos dos medievalistas, porquanto acreditava que essas fórmulas crípticas contivessem raros estímulos psicológicos, que poderiam, concebivelmente, exercer efeitos singulares na substância de um sistema nervoso que tivesse sido abandonado pelas pulsações orgânicas. Comoveu-me o que ele contou sobre o idoso Dr. Torres, de Valência, que compartilhara com ele suas primeiras experiêcias, e que cuidara dele por ocasião da grave enfermidade que o acometera dezoito anos antes, e da qual procedia sua atual debilitação. Pouco depois de haver o venerando facultativo salvo o colega, ele próprio sucumbira ao horrendo inimigo que combatera. Possivelmente o esforço tivesse sido excessivo; o Dr. Muñoz deixou claro, em sussurros (conquanto não descesse a minúcias), que os métodos de cura haviam sido excepcionalíssimos, envolvendo cenas e processos desaprovados por galenos idosos e conservadores.
Com o passar das semanas, observei com pesar que, com efeito, meu novo amigo estava, lenta mas inequivocamente, perdendo suas forças, tal como sugerira a Sra. Herrero. O aspecto lívido de sua fisionomia se intensificava, a voz se fazia mais vazia e indistinta, seus movimentos musculares mostravam menor coordenação, seu espírito e sua força de vontade revelavam menos fortaleza e iniciativa. Não parecia ele de modo algum desatento a essa triste transformação, e pouco a pouco tanto sua expressão quanto sua conversa foram adquirindo uma ironia desagradável que restaurou em mim a repulsa sutil que eu havia sentido de início. Ele foi cultivando caprichos esquisitos, afeiçoando-se a especiarias exóticas e incenso egípcio até que seu quarto recendia como a tumba de um faraó no Vale dos Reis.
Ao mesmo tempo, aumentava seu desejo de ar frio, e com minha ajuda ele ampliou a tubulação de amônia de seu quarto e modificou o sistema de bombas e a alimentação de sua máquina de refrigeração, até conseguir manter a temperatura entre 1º e 4,5º centígrados e, finalmente, na casa de 2º centígrados negativos. O banheiro e o laboratório, naturalmente, eram menos frios, para que a água não se congelasse no encanamento e os processos químicos não se vissem prejudicados. O inquilino do cômodo ao lado do dele queixou-se do ar gélido que entrava pela porta de ligação; por isso, ajudei o doutor a instalar re-posteiros pesados, que mitigassem o problema. Uma espécie de horror crescente, de feitio bizarro e mórbido, parecia possuí-lo. Ele falava da morte sem cessar, mas ria cavamente quando coisas como providências fúnebres ou de sepultamento eram obliquamente sugeridas.
De maneira geral, ele se converteu em companhia desconcertante e até repelente. Contudo, por gratidão ao modo como ele me curara, eu não me dispunha a abandoná-lo aos estranhos que o cercavam, e tinha o cuidado de espanar-lhe o quarto e atender às suas necessidades de cada dia, metido num sobretudo pesado que eu havia comprado especialmente para esse fim. Da mesma forma, eu fazia grande parte de suas compras e observava com assombro alguns dos produtos químicos que ele encomendava a farmacêuticos e fornecedores de laboratórios.
Uma crescente e inexplicada atmosfera de pânico parecia avolumar-se em seu apartamento. Toda a casa, como já foi dito, recendia a bolor; entretanto, o odor em seu apartamento era pior e, apesar de todas as especiarias e do incenso, bem como dos acres produtos químicos dos banhos (agora contínuos) que ele insistia em tomar sem ajuda, percebi que o cheiro deveria estar ligado à sua enfermidade, e tive um calafrio ao refletir sobre qual poderia ser. A Sra. Herrero persignava-se ao olho e deixou-o de bom grado aos meus cuidados, sem nem mesmo permitir que o filho, Esteban, continuasse a lhe prestar serviços. Quando eu sugeria que ele buscasse o auxílio de outros médicos, o inválido revelava fúria, tão grande quanto ele parecia atrever-se a demonstrar. Era evidente que ele receava o efeito físico da emoção violenta, e no entanto sua força de vontade e seus ímpetos antes se fortaleciam que minguavam, e ele se recusava a guardar o leito. A lassidão dos primeiros tempos de sua enfermidade deu lugar a um retorno de sua disposição fogosa, de modo que ele parecia arremessar reptos ao rosto do demônio da morte no momento mesmo em que esse antigo inimigo se apossava dele. A simulação do comer, que sempre fora, curiosamente, quase um formalismo, foi praticamente abandonada; e somente a força mental parecia protegê-lo do colapso total.
Adquiriu ele o hábito de redigir longos documentos que cuidadosamente lacrava e cercava de recomendações para que eu os transmitisse, após sua morte, a certas pessoas por ele nomeadas - na maioria letrados das Índias Orientais, mas entre as quais havia um outrora famoso médico francês, hoje em geral tido como morto, e a respeito de quem as coisas mais inconcebíveis haviam sido murmuradas. Quero dizer desde logo que queimei todos esses papéis, sem entregá-los nem abrí-los. Seu aspecto e sua voz se tomaram assustadores ao extremo, e sua presença quase insuportável. Num certo dia de setembro, ao vê-lo de relance, um homem que tinha vindo consertar sua lâmpada elétrica de mesa foi tomado de uma crise epiléptica, crise essa para a qual o doutor prescreveu remédios eficientes, enquanto se mantinha longe da vista. Aquele homem, é bom que se diga, havia passado pelos horrores da grande guerra sem haver sucumbido a um susto tão medonho. Foi então que, em meados de outubro, sobreveio, com subitaneidade estarrecedora, o horror dos horrores. Numa noite, mais ou menos às onze horas, a bomba da máquina refrigeradora quebrou-se, de forma que dentro de três horas o processo de resfriamento amoniacal se tornou impossível. O Dr. Muñoz chamou-me, batendo com os pés no chão, e pus-me a trabalhar desesperadamente para reparar o dano, enquanto meu anfitrião praguejava num tom cuja cavidade inerte e impetuosa foge a qualquer descrição. Não obstante, meus esforços amadorísticos foram baldados; tendo ido buscar um mecânico de uma garagem vizinha, que ficava aberta a noite toda, ficamos sabendo que nada poderia ser feito até de manhã, quando um novo pistão teria de ser adquirido. A indignação e o medo do ermitão moribundo, elevando-se a proporções grotescas, parecia ser de molde a destruir o que restava de seu físico fraquejante; e em certo momento um espasmo fez com que ele levasse as mãos aos olhos e corresse ao banheiro. Saiu dali tateando o caminho, com o rosto envolvido em bandagens, e nunca mais lhe vi os olhos.
O frio do apartamento diminuía agora sensivelmente, e ao dar as cinco da manhã o médico retirou-se para o banheiro, ordenando-me que o mantivesse abastecido com todo o gelo que eu pudesse obter em farmácias e bares. Ao voltar de minhas excursões, às vezes desencorajadoras, e deitar o que havia conseguido junto à porta do banheiro, eu escutava um contínuo espadanar de água lá dentro, enquanto uma voz grossa pedia "Mais... mais!" Por fim, raiou um dia quente, e uma a uma as lojas se abriram. Pedi a Esteban que ajudasse com o provisionamento de gelo enquanto eu ia adquirir o pistão da bomba, ou que encomendasse o pistão enquanto eu continuava a buscar gelo; no entanto, instruído pela mãe, ele se recusou peremptoriamente a ajudar.
Por fim, contratei um vadio de aspecto miserável que encontrei na esquina da Oitava Avenida para manter o paciente abastecido de gelo, trazido de uma lojinha onde o apresentei, e me entreguei, diligente, à tarefa de localizar um pistão de bomba e de contratar operários que soubessem instalá-lo. A tarefa parecia quase interminável, e fui tomado de ira quase tão violenta quanto a do ermitão ao ver as horas se escoando num ciclo infatigável de telefonemas infrutíferos, de correrias de um lado para outro, indo ali e acolá' de metrô e transporte de superfície. Mais ou menos ao meio-dia encontrei um fornecedor satisfatório numa rua remota do centro da cidade, e aproximadamente à 1:30 da tarde cheguei à pensão com as peças necessárias e dois mecânicos fortes e inteligentes. Eu havia feito tudo quanto me fora possível e esperava chegar em tempo.
O negro terror, no entanto, me precedera. A pensão se transformara numa casa de orates, e sobre as vozes aterradas escutei um homem rezando com voz gravíssima. Havia pelo ar um quê de diabólico e os inquilinos rezavam o rosário com maior vigor ao sentirem o cheiro que exalava por baixo da porta fechada do médico. O vagabundo que eu contratara, ao que parece, havia fugido aos gritos e de olhos esbugalhados pouco depois de haver feito sua segunda entrega de gelo, talvez como resultado de excessiva curiosidade. Não podia, está claro, trancar a porta ao sair; no entanto, agora ela estava fechada, presumivelmente por dentro. Não se ouvia som algum, com exceção de uma espécie indefinível de vagaroso e denso gotejar.
Depois de consultar a Sra. Herrero e os trabalhadores, e apesar do medo que me corroía a alma, opinei que deveríamos arrombar a porta; todavia, a senhoria descobriu uma maneira de virar a chave pelo lado de fora, com auxílio de um arame. Havíamos previamente aberto as portas de todos os outros quartos naquele corredor, além de descerrado as janelas até em cima. Agora, protegendo os narizes com lenços, invadimos, trêmulos, o amaldiçoado quarto, que resplendia com o sol quente do começo da tarde.
Uma espécie de trilha escura e lodosa levava da porta aberta do banheiro até a porta do corredor, e dali à escrivaninha, onde uma pocinha horrorosa se acumulara. Havia ali alguma coisa rabiscada a lápis, como que por um cego trêmulo, num pedaço de papel nojentamente manchado, ao que parecia pelas próprias garras que haviam traçado as apressadas palavras finais. Depois a trilha conduzia ao sofá e terminava de um modo que não pode ser descrito.
O que estava, ou tinha estado, no sofa não posso nem ouso dizer aqui. Mas eis o que decifrei no papel pegajosamente manchado, antes de riscar um fósforo e reduzí-lo a cinzas; o que decifrei tomado de pânico, enquanto a senhoria e os dois mecânicos saíam em disparada daquele lugar infernal para ir relatar suas histórias incoerentes na delegacia de polícia mais próxima. As palavras nauseantes pareciam quase inacreditáveis naquele fulgor amarelo de sol, com o matraquear de automóveis e caminhões que vinham subindo ruidosamente a Rua 14, mas, no entanto, confesso que acreditei nelas naquele momento. Se acredito agora naquelas palavras, honestamente não sei dizer. Existem coisas a respeito das quais é melhor não especular, e tudo quanto posso dizer é que detesto o cheiro de amônia e sinto-me desfalecer ante uma lufada de ar inusitadamente frio.
"O fim chegou", dizia o rabisco pestilencial. "Não haverá mais gelo... o homem olhou e correu. Fica cada vez mais quente e os tecidos não poderão durar mais. Imagino que saibas... o que eu disse sobre a vontade, os nervos e o corpo preservado depois que os órgãos cessassem de funcionar. Era uma boa teoria, mas não podia ser mantida indefinidamente. Houve uma deterioração gradual que eu não previra. O Dr. Torres sabia, mas o choque o matou. Não pôde suportar o que teria de fazer; tinha de me meter num lugar estranho e escuro, mas atentou à minha carta e me fez voltar, com seus cuidados. E os órgãos jamais voltariam a funcionar novamente. Tinha de ser feito à minha maneira (preservação artificial), pois vês: eu morri naquela época, há dezoito anos."