quarta-feira, 26 de agosto de 2009

MENSAGEIRO DA REALIDADE CLASSIFICADO PARA O TOP 100 CATEGORIA COMUNICAÇÃO!

Vida de clichê


Quando nos resignamos a uma existência lugar-comum

Nesta terça-feira (25), Humberto Werneck lança seu O Pai dos Burros – dicionário de lugares-comuns e frases feitas (Arquipélago Editorial, 2009). Dono de um dos grandes textos da imprensa brasileira, ele passou quase 40 anos colecionando os clichês que sujam as páginas de jornais, revistas, livros. Aquelas palavras que, de tanto ouvi-las, são as primeiras a aparecer na nossa cabeça, na ponta dos nossos dedos. É automático. Chegam antes do pensamento. De certo modo, são as palavras que nos libertam para não pensar. Foram ditas muitas vezes antes, não causarão nenhuma reação inesperada. Não provocarão nada, nem de bom, nem de ruim. Tanto faz dizer que "a vida imita a arte" ou que "o futebol é uma caixinha de surpresas". É um dizer que nada muda, é um imenso nada.

Por que então os clichês são tão populares? Porque são seguros, é o que disseram gente brilhante como H.L. Mencken e Hannah Arendt. Ao repetir uma ideia velha, o que foi dito e redito por tantos antes de nós, nada sai do nosso controle. Também nada acontece. Uma nova ideia é sempre um risco, não sabemos aonde ela vai nos levar. E, na falta de ousadia, o que nos sobra é medo.

Escrevi uma pequena matéria sobre o dicionário de clichês na edição impressa desta semana. E li todas as 208 páginas, os 4.640 clichês, para conhecer as palavras das quais deveria fugir. Desde então, adquiri um incômodo que não sai de mim. Ao colecionar lugares-comuns, Werneck espera nos instigar a pensar antes de sair escrevendo – ou falando. Se o jogo de palavras vier muito fácil, é porque já foi dito tantas vezes que abriu um escaninho no nosso cérebro. Basta apertar uma tecla invisível e sai de lá pronto. Não custa nada, nem mesmo um esforço mínimo. "O tempo é o senhor da razão", "a esperança é a última que morre", "nunca antes na história deste país"... os clichês estão sempre sendo produzidos, até mesmo como estratégia de marketing.

Há os clichês coletivos, que estão no dicionário do Werneck, e acredito que cada um de nós tem um repertório próprio. Expressões que repetimos nos nossos textos, nos nossos discursos, na nossa autodefesa permanente – não apenas diante de outros, mas também no banco dos réus do nosso tribunal pessoal. Ideias que já testamos e sabemos que tipo de reação provocam, um repertório confiável de velhos truques.

Criamos nosso próprio mundo de palavras e de pensamentos. Na busca de um lugar seguro, não copiamos apenas os outros, mas a nós mesmos, infinitas vezes. Se é fácil rir das frases feitas a que a maioria se agarra para não mergulhar no desconhecido, também é fácil observar que muitos dos que riem não ousam ir além dos comportamentos clichês em sua própria vida.

Foi seguindo o fio deste raciocício que fui me tornando incomodada e um pouco melancólica. Tento policiar-me para escrever sem usar fórmulas, ainda que minhas. Forçar-me a buscar jeitos novos, ser uma parte diferente de mim em cada texto. Nem sempre consigo. Mas tento me obrigar a tentar. Depois de 21 anos escrevendo na imprensa, é fácil ser uma cópia de mim mesma.

Sei disso e tento manter-me inquieta. Quando vou me tornando um bichinho, enrodilhada em mim mesma, sou também eu que me cutuco com um pedaço de pau para sair da toca. Conforto é bom, mas é também uma não-ação. Sei que apenas chegando cada vez mais perto de mim mesma é que posso alcançar a possibilidade de ser outra. E de fazer do velho em mim algo novo.

Numa entrevista a Clarice Lispector, o psicanalista Hélio Pellegrino disse algo que me cutucou com delicadeza, mas bem fundo. Sempre que leio uma entrevista ou um texto dele, fico pensando como alguém pode dizer algo tão elaborado com tanta simplicidade, numa resposta oral a uma pergunta que não esperava. E com tanta generosidade para aquele que o escuta. Suas palavras não machucam porque não foram pensadas para ferir. Com a ponta dos dedos, elas acariciam. Foram pronunciadas para dar uma chance ao interlocutor, leitor. São como uma mão que alcança – e não um pé que esmaga. Vivemos num mundo em que as pessoas se sentem mais seguras quando se tornam pés que esmagam. A mão que alcança exige mais coragem, porque alcançar é sempre um risco – e esmagar tem um final previsível.

O Hélio disse, lá pelas tantas: "Escrever e criar constituem, para mim, uma experiência radical de nascimento. A gente, no fundo, tem medo de nascer, pois nascer é saber-se vivo – e, como tal, exposto à morte". Lembrei da frase e fui reler essa entrevista por causa dos clichês. Pareceu-me, então, que o esforço do Werneck ganhou um sentido mais amplo. Ele tenta, com seu pequeno dicionário, seu "burrinho", como ele diz, nos chamar a atenção para as inúmeras possibilidades de nascimentos que perdemos quando repetimos um lugar-comum em vez de uma combinação de palavras que só nós podemos fazer.

Não porque somos melhores que os outros, mas porque a singularidade do nosso olhar é só nossa. Como diz o poeta, "se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver". Ou, na frase genial do menino de 8 anos que li na seção "Quem diria" da Revista da Folha do último domingo (23): "Pai, tô em extinção. Só tem um Guilherme Ribeiro Kierpel no mundo". Ele descobria ali, depois de uma aula de ciências, a singularidade do que era. Um dia pode descobrir que, para alcançá-la em sua integridade, precisará de muita coragem. Terá de resistir ao conforto de uma vida de lugar-comum.

Clichês são letra morta. Palavras que nasceram luminosas e morreram pela repetição, já que a morte de uma palavra é o seu esvaziamento de sentido. Agarrar-se aos lugares-comuns para não ousar arriscar-se ao novo é matar a possibilidade antes de ela existir. É matar-se um pouco a cada dia, ao matar nossa expressão no mundo. De homens, nos reduzimos a papagaios. Como naquelas reuniões de empresa em que as pessoas se digladiam numa guerra de jargões coorporativos que nada dizem delas, mas fingem dizer. Acreditam que assim mantêm o emprego, seu diminuto lugar no mundo. Se os clichês forem pronunciados em inglês, mais seguras se sentem.

O mundo das frases feitas serve também para isso, para não deixar o novo entrar. Quem não conhece o manual – e é preciso um certo tempo para descobrir que os jargões só são cascas de palavras e não palavras –, é colocado do lado de fora da linguagem. Exilado, não ameaça ninguém – nem o funcionamento do todo – com as palavras mais subversivas e ameaçadoras para este mundo: as próprias.

Quando nos expressamos por palavras, temos sempre a possibilidade de nascer. E se renunciamos ao nascimento, ao trocar a possibilidade do novo pelos chavões, aceitamos a morte antes de viver? Fiquei pensando nisso. Parece-me que os lugares-comuns vão muito além das palavras. A gente pode transformar nossa vida inteira num clichê. Não basta apenas pensar antes de escrever, na tentativa de criar algo nosso. É preciso pensar para viver algo nosso – antes de repetir a vida de outros.

Do mesmo modo que é mais fácil botar no mundo o primeiro chavão que nos vem à cabeça, também é mais fácil – e mais aceito – viver segundo os clichês da nossa família, sociedade, época. Penso que a maioria de nós vai vivendo e repetindo velhas vidas que aparentemente já deram certo e não incomodam ninguém. O que seria o clichê de uma vida de classe média de um brasileiro de hoje?

Vou arriscar. Estudar num colégio privado desde a creche. Começar a falar inglês ainda bebê. Alguma coisa tipo ballet ou artes marciais ou aulas de circo. Em algum momento do ensino médio ir para a Disney com a turma ou até fazer um intercâmbio para melhorar o inglês. Ingressar na universidade. Antes ou depois da faculdade morar um tempo em Londres. Em algum momento tocar saxofone ou algum outro instrumento que lembra bares boêmios, com atmosfera noir, de uma vida que leu nos livros e/ou viu nos filmes. Produzir alguma coisa de cinema de documentário e/ou criar um blog onde finalmente pode expressar seu verdadeiro eu. Rebelar-se um pouco e enfim trabalhar, reclamar do trabalho e fazer umas baladas com os colegas de trabalho e os velhos amigos da faculdade. Descobrir que ser adulto é aceitar a vida como ela é. Casar, comprar apartamento, ter um ou dois filhos, entender de vinhos e fazer viagens de férias bacanas para a Europa, Estados Unidos ou países exóticos da Ásia e mais recentemente também da África. Não sei bem como continua.

Não é ruim ou errado, não se trata disso. Pode até ser muito rico, se for vivido como algo próprio, segundo a singularidade de quem vive, não segundo a ditadura do clichê do que deve ser uma vida de uma pessoa de classe média do início do terceiro milênio. Parece-me, porém, que não pensamos muito antes de vivermos uma vida lugar-comum. Não pensamos nada quando acordamos pela manhã e seguimos até a noite uma rotina instituída por quem? Ah, sim, por nós.

Não pensamos nem mesmo que nada impede que façamos tudo diferente. Apesar da pilha de empecilhos-clichês que temos na ponta da língua para ocultar nosso medo de arriscar, se formos pensar com a necessária honestidade, a vida está mesmo nas nossas mãos.

Podemos viver um lugar-comum, que nos carrega para a zona de conforto e não ofende nem a família, nem o patrão, nem o Estado. E podemos tentar viver a nossa vida, a vida que só nós podemos viver. A vida que nos transforma desde sempre, como descobriu o menino de 8 anos, em alguém em extinção.

E com isso não falo de uma vida povoada de aventuras grandiosas, falo de pequenas aventuras que podem ser vividas até mesmo no sofá da sala, sem acompanhamento de violinos, sem testemunhas, sem reconhecimento público. A vida que só nós podemos viver, aquela que busca a singularidade do que é nosso, é aquela que passamos a vida buscando.

É também a vida sujeita ao erro, ao imprevisto, ao descontrole. De novo, a entrevista de Hélio Pellegrino a Clarice Lispector. Ela, ainda bem, não tenta arrancar nada de ninguém. Apenas pergunta, suavemente: "Hélio, é bom viver, não é?". Ele responde, um vento avançando pelas nossas crenças: "Viver, essa difícil alegria. Viver é jogo, é risco. Quem joga pode ganhar ou perder. O começo da sabedoria consiste em aceitarmos que perder também faz parte do jogo. Quando isso acontece, ganhamos algo extremamente precioso: ganhamos nossa possibilidade de ganhar. Se sei perder, sei ganhar. Se não sei perder, não ganho nada, e terei sempre as mãos vazias. Quem não sabe perder, acumula ferrugem nos olhos, e se torna cego – cego de rancor. Quando a gente chega a aceitar, com verdadeira e profunda humildade, as regras do jogo existencial, viver se torna mais do que bom – se torna fascinante. Viver bem é consumir-se, é queimar os carvões do tempo que nos constitui. Somos feitos de tempo, e isso significa: somos passagem, somos movimento sem trégua, finitude. A cota de eternidade que nos cabe está encravada no tempo. É preciso garimpá-la, com incessante coragem, para que o gosto do seu ouro possa fulgir em nosso lábio. Se assim acontece, somos alegres e bons, e a nossa vida tem sentido".

A vida que se vive para longe dos clichês não tem garantias. Tem vida. Tudo o que a vida que se vive para longe dos clichês nos oferece é isso, vida apenas.

Quando eu tinha 13 anos, de repente percebi que a vida que me esperava era um interminável lugar-comum. Terminar o colégio, fazer faculdade etc etc. A revelação teve um enorme impacto sobre mim. Me fechei no quarto, passei um tempo sem falar com minhas amigas, com ninguém. A falta de sentido do sentido da minha vida me esmagava. Decidi então que deixaria o colégio. Pararia tudo. Não pela convicção de que não deveria estudar, mas porque eu precisava fazer algo para interromper o fluxo inexorável rumo a uma vida feita de uma sucessão de frases feitas.

Parar tudo era um ato desesperado. E de uma lucidez assustadora para alguém de 13 anos. Anunciei a decisão aos meus pais. E disse que iria a Campinas falar com o meu irmão sobre o que sentia. Sempre fui enormemente ligada a esse irmão, que foi quem me ensinou a escrever – graças a isso escrevo como canhota, embora seja destra. Na época, ele estudava Física na Unicamp.

Peguei um ônibus em Ijuí, na minha primeira viagem sozinha, e desembarquei em São Paulo. O Zé estava lá, me esperando – e disfarçando bastante bem a enorme encrenca que representava o advento da irmã caçula em sua rotina de estudante pobre. Embarcamos num ônibus para Campinas e eu vivi a sua vida por uns dias. Ele morava numa garagem de carro, nos fundos de uma casa. Em vez do carro, tinha ele. O chão era de terra, sua cama, que passou a ser a minha cama, era um colchão em cima de uns tijolos, suas poucas roupas eram guardadas num caixote de madeira, o único móvel era uma escrivaninha onde ele estudava das 5h de uma madrugada até à 1h da seguinte, com interrupção para as aulas que ele achava que valiam a pena e para eventuais reuniões de política estudantil. A mesma rotina que ele havia iniciado com apenas 15 anos. Naquele tempo, sem saber por onde começar, começou lendo enciclopédias. Mas esta é uma outra história.

Na primeira madrugada que passei na sua garagem-casa, acordei e o vi ali, debruçado sobre os livros, os pés na terra, tudo muito pobre e muito frio. Além do almoço no restaurante universitário, sua dieta se limitava a bananas, pão e leite. Meu coração se apertou de amor pela grandeza daquele pouco mais que um menino, solitário diante do parapeito do mundo. Descobri ali, assistindo àquela cena enquanto fingia dormir, que o Zé estava obcecado em se tornar não apenas o melhor físico que podia ser, mas o melhor homem que podia ser. Estava em busca da vida que só ele poderia criar para si mesmo.

Voltei para casa. E muito aconteceu desde então. Semanas atrás, quando escrevi uma coluna sobre nosso afastamento do universo (O céu nos espera), o Zé me mandou um email sobre sua "visão cosmológica". Escreveu na linguagem informal de um irmão escrevendo um email para a irmã: "Somos um acidente evolutivo, ou melhor, apenas um dos inúmeros (sub-) produtos. A consciência não tem nada de especial (a não ser para nós, é claro). Nossa posição temporal e geográfica no universo é totalmente irrelevante. A contrapartida é que somos capazes de perceber nossa existência (acredito que, em outros níveis, outros animais complexos também conseguem). A partir daí, o mundo, tal qual percebemos, é TUDO o que temos (e teremos!). Portanto, estamos no centro do NOSSO universo. E isso coincide com as nossas adaptações evolutivas. Assim, nossa cosmologia é encontrar um ponto de contato entre essas duas realidades: a externa, de total irrelevância, e a interna, onde somos centrais (tanto que nosso universo desaparece com a nossa morte). Por isso a religião (que resolve esse problema) é – a meu ver – uma evolução natural da nossa cultura, consequência natural da nossa evolução biológica (esse é o pensamento, mais ou menos, entre outros, do Daniel Dennett, em Breaking the Spell). Somos "believers" (crentes). O que eu acho mais interessante no ponto de vista agnóstico (ou ateu) é que, diante dessas percepções, sabemos que somos tudo o que temos (como indivíduo ou como espécie) e, portanto, temos a liberdade e a responsabilidade de definirmos o que queremos ser (como indivíduo e como espécie). A construção do nosso mundo e para onde vamos é nossa responsabilidade. Acho que não pode haver maior riqueza em uma vida do que essa liberdade".

Era um convite para tomarmos um vinho e falarmos sobre a vida. Como conversamos lá atrás, comendo banana com leite. Agora, nós dois podemos pagar por um vinho que não dê dor de cabeça no dia seguinte. E temos um tapete para pisar. Mas nossa inquietação segue latejando, às vezes doendo muito – e nos carregando para vários lugares. Sempre em busca. E sempre usando qualquer pretexto para buscar: uma palavra, um livro, um filme, uma pessoa, uma traição, um esquecimento, uma solidão. Qualquer pedaço de madeira em que possamos nos agarrar para não sermos afogados pelo oceano de comportamentos clichês, para que nossa ânsia de vida nos leve sempre a viver. Com todas as dores, as fomes, as perdas e também os ganhos que fazem parte de uma vida não escrita. Nenhum de nós quer ser reduzido a um personagem de si mesmo, ainda que seja um bom personagem.

Foi até aqui que o dicionário de clichês do Humberto Werneck me levou. Não sei se faz sentido para mais alguém além de mim, mas no fundo sempre escrevemos para nós mesmos. Para, como disse Hélio Pellegrino, poder nascer. E descobrir-se vivo, radicalmente vivo.

ELIANE BRUM
ebrum@edglobo.com.br

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

O último petardo e Raul Seixas já podia partir




SÃO PAULO - Quando velhos sucessos de Raul Seixas começaram a tocar repetidamente nas rádios na tarde daquela segunda-feira, 21 de agosto de 1989, não foram poucos os que se surpreenderam. Com Raul ausente das paradas desde Cowboy Fora da Lei, dois anos antes, escutar antigos hits como Ouro de Tolo, Gita, Metamorfose Ambulante e Maluco Beleza no meio da programação regular - que então ia da revelação Marisa Monte a Chitãozinho e Xororó e Milli Vanilli, passando por Legião Urbana - deveria significar alguma coisa. E a notícia não demorou a chegar.

Se para muitos foi uma surpresa, para os que acompanhavam o artista de perto era mais que esperado. Suas últimas aparições públicas causavam um misto de choque e comoção. Mesmo com a saúde bastante debilitada, a lenda do rock brasileiro arrastava multidões em seus shows. Apoiado pelo amigo e discípulo Marcelo Nova, acabara de realizar uma extensa e bem-sucedida excursão por todo o País.

A derradeira apresentação foi em Brasília, poucos dias antes de ser encontrado morto no modesto apartamento onde morava sozinho em São Paulo. A semana que se seguiu ao show no Planalto Central seria de descanso e de preparação para as atividades programadas para o lançamento do disco gravado nos intervalos das apresentações pelo Brasil.

A Panela do Diabo, batizado pela dupla por inspiração de evangélicos que distribuíam panfletos comparando Raul ao Belzebu na porta de um show no interior de São Paulo, era o resultado da parceria que uniu os dois irrequietos baianos no momento em que o País vivia uma de suas mais importantes transições.


Panfletagem evangélica

As primeiras apresentações conjuntas de Raul e Marcelo foram na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador, a apenas duas semanas da promulgação da Constituição de 1988. Mais que um marco histórico, a nova Carta tinha um efeito prático para o roqueiro. Após quase 20 anos de carreira, pela primeira vez ele estaria legalmente livre para dizer o que quisesse, como pregava a sua constituição, o manifesto da Sociedade Alternativa. Junto com a volta das garantias coletivas e individuais, a Constituição Cidadã - como Ulysses Guimarães a batizara - acabava de vez a censura às obras artísticas, mantida no governo civil de Sarney mesmo após a saída dos militares do poder e que ainda naquele 1988 havia proibido a execução pública de Não Quero Mais Andar na Contramão, do fraco disco A Pedra do Gênesis que antecedeu o encontro de Raul com Marcelo.

Se os novos tempos traziam liberdade total de expressão, o que faltava agora a Raul era motivação. Diabético, com uma pancreatite crônica decorrente do alcoolismo e recém-separado da última das cinco mulheres com quem foi casado, estava depressivo e amargurado. O sarcasmo, a ironia e a índole zombeteira e verborrágica que por anos marcaram suas aparições e músicas deram lugar a uma figura calada.


O convite do ex-líder do Camisa de Vênus para os shows - junto a um necessário acompanhamento médico - deu uma injeção de ânimo em Raul. Já na chegada a Salvador para as primeiras apresentações, a dupla chegou zombando de Gilberto Gil, que dava na capital baiana os primeiros passos da carreira política que culminaria anos depois com o cargo de ministro da Cultura no governo Lula. O atual presidente, na época disputando a sua primeira eleição presidencial, também foi alvo da dupla. Com a inédita campanha eleitoral para a escolha do novo presidente a pleno vapor em meados de 1989, o magro barbudo e Marcelo declaravam que não acreditavam em alguém que não ria, referindo-se à sisudez do petista, considerada um dos principais fatores de rejeição a ele.



Bandido casa com mocinho

Apesar do calor da disputa eleitoral enquanto corria a turnê, a sucessão política especificamente não serviu de inspiração para as composições da nova dupla. Mas outros temas que estavam nas páginas de jornais e nos noticiários da TV não passaram despercebidos. Em meio às celebrações ao "rockão antigo" e canções autobiográficas, a panela preparada por Raul e Marcelo misturava Salman Rushdie, Sting e cacique Raoni em Best Seller e ainda davam uma espinafrada em Edir Macedo na divertida Pastor João e a Igreja Invisível : "Pois eu transformo água em vinho, chão em céu, pão em pedra, cuspe em mel/Para mim não existe impossível/pastor João e a Igreja Invisível." 20 anos depois, com os mesmos personagens ainda protagonizando os noticiários não deixa de ser premonitória a sentença da já citada Best Seller , que dizia que no final bandido casa com o mocinho.

Mas os pontos altos eram mesmo as que olhavam para dentro, para trás, ou para o futuro, como a mistura de balanço de vida com testamento de Banquete de Lixo : "Meu amigo Marceleza/já me disse com certeza/ não sou nenhuma ficção/ e assim torto de verdade/com amor e com maldade/ um abraço e até outra vez."

Raul não viveria para ver o relativo sucesso do disco. Morreu aos 44 anos no dia em que o LP chegava às lojas. Também não viu o resultado daquelas eleições, a iminente queda do Muro de Berlim, a chegada da MTV, os anos 90, a internet... que talvez poderão ser cantadas por alguém daqui dez mil anos.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

A Implacável Noite dos Longos Punhais


A Noite dos Longos Punhais foi um episódio de conspiração, traição e morte nas entranhas do poder da Alemanha nazista. Numa mal sucedida resistência à liderança de Adolf Hitler, o capitão Ernst Röhm, seu antigo colaborador e comandante da Seção de Assalto - SA Sturmabteilung, braço militar do Partido Nazista, passou a defender publicamente a transformação da mesma em uma milícia independente, e com poderes para controlar o exército alemão. Seu discurso foi repelido pela classe média e inquietou as bases militares e industriais, indispensáveis para os planos de longo prazo do Führer. A reivindicação de Röhm alarmou os generais, que passaram a cobrar de Hitler uma resposta enérgica. O ex-colaborador não imaginava o seu destino, após cair em desgraça com o Chanceler.

Alegando reação a uma rebelião no seio da SA, então com dois milhões e meio de soldados, Hitler livrou-se de maneira brutal dos seus traidores. Durante a madrugada, elementos da sua guarda pessoal, a SS - Schutzstaffel, invadiram o hotel em que Röhm se encontrava na companhia de outros líderes da SA. Surpreendidos, todos foram detidos e rapidamente fuzilados. A inquietação pública na capital foi evidente e deu margens aos mais aterradores boatos. Para conter a agitação, o governo reforçou a segurança nas ruas com a SS, e deu ordens extremas à imprensa que não noticiasse os fatos, sob risco de severa punição aos desobedientes.

O triunfo e a hegemonia de Hitler

Oficialmente, o governo alegou que a SA preparara um golpe contra o Reich. Na realidade, porém, Hitler concretizava mais uma de suas estratégias de poder. Como um ano antes ele tinha liquidado a esquerda alemã, o massacre significou a eliminação dos seus últimos rivais. Sem contestação, era o líder supremo. A SS, força de elite ideológica e racial, passou a ter grande relevância na estrutura do poder, encarregada da segurança interna da Alemanha e, na guerra, dos países ocupados. O banho de sangue custou dezenas de vidas, muitas sem qualquer ligação com Röhm.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Miles Davis, intenso até o fim



"Carros de luxo,
mulheres bonitas,
drogas e bebidas,
doenças e operações,
frases polêmicas
e dezenas de discos
de inovadora
e excelente música.
Esta pode ser
a síntese da vida
- repleta de excesso,
na trajetória pessoal
e no talento artístico
- de Miles Dewey Davis III,
o grande trompetista..."
Jornal do Brasil


A música, o jazz em particular, perdeu um de seus mais consagrados expoentes. O artista americano Miles Davis, 65 anos, não resistiu às complicações decorrentes de apoplexia, pneumonia e insuficiência respiratória, e morreu em Santa Mônica, Califórnia. Ele foi enterrado no Bronx, Nova Iorque.

Sempre consciente de que não era como os outros, Miles nasceu diferente dos tantos outros que habitariam seu mesmo universo. Não teve a infância difícil, nem o início de carreira miserável, tal como outros gênios do trompete. Foi criado num seio familiar burguês, com o conforto de frequentar boas escolas e a oportunidade de aprimorar com estudos seu talento ao trompete. Esta base, que muito contribuiu com o seu ingresso na prestigiada e seleta Juilliard School of Music de Nova Iorque, também favoreceu ao seu estigma de rebelde. Se por um lado as portas se abriam por sua performance musical, por outro, as regalias a que se acostumou, possibilitaram um comportamento desregrado, que acabaria por levá-lo ao submundo. Essa complexidade se notabilizaria a partir do final dos anos 40, quando já consagrado como a grande revelação do jazz, sairia de cena pela primeira vez, por quatro anos, em função do consumo de drogas. Neste ritmo, desfilou toda sorte de suas experiências: os músicos geniais que conheceu, os sons que criou, as fusões musicais que promoveu, as mulheres que amou, as violências em que se envolveu, as perdas que sofreu. Uma vida frenética, até o fim.

Um artista atraído pelas experimentações

Indiossincrático. Miles Davis foi um furacão, de pensamento a mil, inquieto e alucinógeno, passional e contraditório, indecifrável. Um dos maiores trompetistas do século XX, redefiniu constantemente sua música. Inventivo, permanentemente atraído pelas experimentações, revolucionou o jazz, inserindo outros estilos ao gênero, como o rock, criando o que passou a ser convencionado como 'fusion'. Criticado pelos jazzistas tradicionais, que condenavam seu poder inventivo, Miles manteve-se firme em suas convicções, para a sorte do grande público que sua produção musical arrebatou

17 de agosto de 1987 – O adeus ao poeta de coração gauche


Há 22 anos, morria Carlos Drummond de Andrade, um dos mais importantes e respeitados poetas brasileiros de seu tempo. Drummond morreu no Rio de Janeiro, de insuficiência respiratória, aos 84 anos, apenas 12 dias depois que um câncer ósseo levou Maria Julieta, sua filha, eterna musa e grande paixão. “E assim vai-se indo a família Drummond de Andrade” lamentou o poeta na época.

Carlos Drummond de Andrade nasceu em 31 de outubro de 1902, na cidade de Itabira, Minas Gerais. Estudou em Belo Horizonte e com jesuítas no Colégio Anchieta, em Nova Friburgo, no Rio, onde foi expulso por “insubordinação mental”. Por insistência dos pais, formou-se em farmácia em 1925. No mesmo ano, fundou com amigos A Revista, importante veículo de afirmação modernista em Minas. Ingressou no serviço público e, em 1934, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde permaneceu até o final de sua vida. Aqui, foi chefe do gabinete do ministro da educação Gustavo Capanema, trabalhou no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e colaborou como cronista no Correio da Manhã. Aposentou-se em 1962, mas, em 1969, tormou-se colaborador do JB.

Durante 15 anos, todas as terças, quintas e sábados, o poeta de coração gauche – deslocado, acanhado - publicou suas crônicas no Caderno B. De sua estreia, em 2 de outubro de 1969, falando sobre o leilão que liquidava a Panair do Brasil, até o ‘ciao’ de despedida em 29 de setembro de 1984, quando faz um balanço de sua atividade na imprensa, foram 780 semanas da história do país e do poeta refletidas com agudeza e lirismo em mais de 2 mil e 300 crônicas.

A obra de Drummond
Foram 84 anos de palpitações, registradas em 25 livros de poesia e 16 outros de crônicas, contos, memórias e cartas, que repercutiram em milhares de estudos analisando-lhe a obra como um marco da cultura brasileira. A obra de Carlos Drummond de Andrade narra a trajetória de um homem, de uma geração e de um país. Poeta do indivíduo desajustado, do cotidiano, da existência e do fazer poesia, foi um jornalista de seu tempo, tratando tanto de temas tipicamente brasileiros, como também de assuntos metafísicos, que dizem respeito à condição e à alma humana. Com a partida de Drummond, a festa acabou, a luz apagou, a povo chorou e a cultura brasileira esfriou. “E agora, José?”.

18 de agosto de 1969 – Termina o Festival de Woodstock


Já era manhã quando, há 40 anos, Jimi Hendrix subiu ao palco montado na fazenda de 600 acres de Max Yasgur, na pequena cidade rural de Bethel, estado de Nova Iorque, e, acompanhado de sua banda Gypsy Suan and Rainbows,entoou a canção Hey Joe, encerrando três dias de paz e música que reuniram cerca de meio milhão de pessoas e entraram para a história como o festival que exemplificou a cultura hippie e a contracultura do final da década de 60, início de 70.

O Woodstock, originalmente batizado de “An aquarian exposition: 3 days of peace and music”, foi organizado por Michael Lang, John P. Roberts, Joel Rosenman e Artie Kornfeld. A intenção inicial era criar um estúdio musical, mas a idéia evoluiu para o festival. Depois que a comunidade de Woodstock vetou a realização do festival no local, os organizadores fizeram um acordo com Max Yasgur e iniciaram as vendas de ingressos em lojas de discos da área metropolitana de Nova Iorque e pelos correios. No dia 15 de agosto, início do festival, os organizadores esperavam a presença de 200 mil pessoas, mas foram surpreendidos com cerca de 500 mil. Depois que as cercas do local foram derrubadas pela multidão, foi impossível controlar a entrada dos milhares de pessoas, o que tornou o evento gratuito para a maioria delas.

Nos três do festival, 32 bandas se apresentaram para uma multidão que, apesar da chuva, da lama e das instalações insuficientes do festival, contrariou as expectativas de confusão e sagrou-se pela pacificidade e harmonia com que acompanhou as apresentações.

Um festival inigualável
Apesar do prejuízo inicial, o retorno financeiro para os organizadores veio em 1970, com o lançamento de dois discos e de um documentário realizados a partir da gravação e das filmagens dos shows do festival. Duas outras versões do evento foram organizadas em 1994 e 1999, porém não tiveram a mesma repercussão do festival de 69 - a última edição do evento inclusive ficou marcada por altos índices de violência, contrastando com os ideais de paz e amor do festival original. Hoje, 40 anos após o Woodstock, os sons e os ideais de uma geração ainda reverberam, quando livros e dvds sobre o festival são lançados comemorando a data.

sábado, 15 de agosto de 2009

Woodstock completa 40 anos de paz, amor e rock



Ideário vive no som de butique de bandas como Magic Numbers, Kings of Leon e lendas como Janis Joplin

Janis Joplin e sua voz rouca embalaram o rock dos hippies em Woodstock
SÃO PAULO - A Feira de Música & Arte Woodstock faz 40 anos neste sábado. Em 15 de agosto de 1969, na fazendinha de 2,4 quilômetros quadrados de Max Yasgur, na cidadezinha rural de Bethel, Nova York, a grande mostra da Era de Aquarius exibiu ao mundo sua face libertária, provocadora, iconoclasta, naturista, enlameada e confusa.
A utopia hippie, ao tornar-se quarentona junto com Woodstock, celebra seu renascimento circular. Durante as décadas de 80 e 90, o "bicho-grilismo" encenado pelos hippies de Woodstock era uma coisa a se evitar. Nos anos 00, virou estilo e meta a ser perseguida. Hoje em dia, olhando algumas bandas de rock como Magic Numbers e Kings of Leon, com suas barbinhas e batinhas e roupinhas sujinhas, parece que não se passou nem um dia sequer.
Parece insano discutir hoje o mérito musical de Woodstock, quando na verdade o festival detonou principalmente uma revolução comportamental. Mas o fato é que algumas performances foram muito mais importantes do que outras - a Sony Music relançou esta semana no Brasil as performances integrais de Janis Joplin, Johnny Winter, Santana, Jefferson Airplane e Sly and the Family Stone. É material essencial para entender o que se passou do ponto de vista artístico naquele marco dos anos 60.
O cantor, violonista, guitarrista e compositor Richie Havens abriu o festival por conta da própria natureza improvisada da festa. Ele lembra que não estava escalado para ser o primeiro a subir naquele palco (seria o quinto, na verdade), mas foi içado pela organização para cantar porque os outros que cantariam estavam presos no imenso congestionamento que se formou na estrada - esperavam 70 mil pessoas, apareceram 400 mil, o que levou o município a pensar em decretar estado de calamidade pública.
"Eram 5 da tarde e nada ainda estava acontecendo", contou Havens anteontem. "Mas eles tiveram de me colocar em primeiro. Eu me senti tipo ‘eles vão me matar se eu subir ao palco primeiro, dá um tempo, preciso daquelas quatro atrações antes de mim para esquentar a plateia’. "Mas não teve jeito. As pessoas foram bacanas. Eu deveria cantar por 40 minutos, o que fiz, mas ali do lado do palco eles diziam: ‘Richie, mais quatro canções?’ Eu cantava e já ia sair e eles diziam: ‘Richie, mais quatro canções?’ E eu continuei tocando por duas horas e 45 minutos, depois que já tinha cantado todas as canções que sabiam." Entre essas canções, estava Freedom, que foi apresentada no documentário de 1970 sobre o festival, ganhador de um Oscar.
Havens, que está atualmente em turnê promovendo seu disco de 2008, Nobody Left to Crown, disse o seguinte esta semana, falando à Reuters: "Todos os tipos de música subiram ao palco naqueles três dias, e todos eles tinham o senso do que era necessário - e do que ainda é necessário em termos de informação para atravessar as barreiras e continuar em frente."
De fato, a música era diversificada, com uma predominância do blues rock e do folk, que eram os gêneros "jovens" da época. Mas houve também a novidade, começando com a fabulosa apresentação de um jovem guitarrista mexicano da Bay Area, Carlos Santana, que ganhou apenas US$ 1,5 mil para tocar e se apresentou no dia 16. As 8 músicas que Santana tocou estavam impregnadas de um latin rock fundido com blues, uma força instrumental turbinada por congas, bateria, baixo e percussão.
Quarenta anos depois, ainda é difícil entender o poder daquela versão que Santana apresentou de Soul Sacrifice. Ao contrário de Hendrix, a outra força motriz do festival, Santana esmerava-se na busca de um acento latino, polirítmico, específico e étnico para sua guitarra. Filho de um músico mariachi de Navarro, no México, o guitarrista inventava um novo léxico.
Outra notável performance foi a do fantástico grupo de black music Sly & The Family Stone, que tocou 9 canções na jornada. Formado por Sylvester ‘Sly Stone’ Stewart e seus brothers Vaetta, Freddie e Rose Stone, mais Gregg Errico (bateria), Jerry Martini (sax), Cynthia Robinson (trompete e vocais), Larry Graham (baixo), o grupo tinha lançado em maio daquele ano o disco Stand!, a mais bem acabada síntese de funk, soul, gospel, psicodelia e rock - e ativismo, com faixas como Don’t Call me Nigger, Whitey.



Janis Joplin, que morreria de forma trágica no dia 4 de outubro de 1970, estava se desvencilhando de sua banda Big Brother and The Holding Company e iniciando a mais curta (e impactante) carreira-solo do rock internacional. Que o digam Joss Stone e Cássia Eller, discípulas diretas da texana.



Dois anos antes, ela cantava folk e blues em bares de São Francisco e Venice Beach, na Califórnia. Em 1966, voltou a Austin para cantar numa banda de country, mas um empresário a convenceu a montar uma banda. Assim, juntou-se à mitológica Big Brother and the Holding Company, que tinha recém-abandonado nas vésperas de Woodstock.



Janis cantou 10 músicas no festival, no dia 17 de agosto de 1969. Quando ela empunhou Ball and Chain, de Big Mama Thornton, encerrando seu show, estava patente que ali não se apresentava uma artista comum, mas alguém destinada a reescrever a história da música popular, embora de forma tão precária.



Do mundo psicodélico, houve uma baixa importante - o Greateful Dead teve sua apresentação maculada por problemas técnicos. Mas o Jefferson Airplane fez bem sua parte, misturando peças viajandonas conhecidas, como White Rabbitt, com outras do disco que lançariam em seguida, como Volunteers, Eskimo Blue Day e Wooden Ships.



Um ano depois daquela loucura, banhos pelados debaixo da chuva, balés e meditação para Sol e Lua no mato, Jimi Hendrix morreria em Londres. Woodstock teve outras edições, como a violenta farra de 1999. Na época, o baixista do Red Hot Chili Peppers, Flea, disse ao Estado que chorou ao ter notícia, ainda nos bastidores, de ocorrências de abuso sexual e violência generalizada entre o público. Durante os momentos de mosh do show do Limp Bizkit, houve uma sessão de quebradeira e saques promovida por uma juventude vitaminada, cheia de sucrilhos e de classe média. Os tempos mudaram, definitivamente.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

A aposentadoria do Hubble



Após duas décadas de operação, o telescópio que mais enriqueceu a história da astronomia será desligado pela Nasa




REPAROS CONSTANTES Em 1999, o astronauta Steven Smith instalou novos equipamentos no Hubble

Uma das maiores vedetes da astronomia sairá do ar. Com missão mais que cumprida no espaço, ela vai ser aposentada. Essa vedete, a rigor, começou mal a sua trajetória, mas agora a encerra com brilhantismo - e é o orgulho de pesquisadores e astrônomos de todo o mundo. Trata-se de um telescópio, o mais potente que a ciência já construiu e que frequentou, pelo menos uma vez por mês e ao longo de 19 anos, o noticiário de publicações leigas ou especializadas de diversos países.

O seu nome? Todos nós estamos familiarizados com ele: Hubble. E essa é a sua história. Em 1990, quando foi lançado dos EUA, sobrou constrangimento na base da Agência Espacial Americana (Nasa): assim que rompeu a barreira da atmosfera, problemas nas dimensões do espelho distorciam e embaçavam as imagens que nos transmitia. Montou-se então uma operação de emergência para repará-lo no próprio espaço e uma equipe de astronautas- mecânicos viajou até o ponto sideral em que ele estava. Tudo deu certo. E esse pode ser considerado, de fato, o início da jornada desse gigante de 12 toneladas.

O Hubble começou então a produzir registros históricos que hoje somam 800 mil observações e meio milhão de imagens de mais de 25 mil objetos com os quais se deparou no cosmos. O telescópio realizou cerca de 100 mil viagens em torno da Terra e percorreu aproximadamente 3,8 milhões de quilômetros - distância equivalente à viagem de ida e volta a Saturno. Orbitando a 650 quilômetros de distância de nosso planeta, se tornou, por exemplo, a "janela tecnológica" mais poderosa para que pudéssemos entender, por meio de imagens enviadas à Nasa, como se dá o nascimento de estrelas.

Um de seus maiores feitos, no entanto, é o de ter mostrado misteriosos buracos negros e provado, a partir de registros que exibem o "apagamento" de estrelas bem maiores que o Sol, que o universo está se expandindo cada vez mais rápido e isso pode causar a sua destruição. Os olhos do Hubble também registraram, em tempo real, o efeito devastador de um cometa se chocando contra Júpiter. É natural, portanto, que agora esses olhos estejam cansados. O Hubble está a demandar uma infinidade de reparos e esse investimento não compensa para a Nasa. Assim se decidiu pela sua aposentadoria.

Fossem outros tempos, que não este de profunda crise econômica mundial a que a Nasa não está imune, e talvez se prolongasse a missão do Hubble - que já consumiu US$ 8 bilhões. Ocorre, no entanto, que já em 2010 ela desativará os ônibus espaciais Discovery, Endeavour e Atlantis, justamente os que mais socorreram o Hubble transportando astronautas para repararem os inevitáveis defeitos que surgiram com o trabalho diuturno ao longo de duas décadas - e sem essa manutenção periódica os giroscópios e baterias do telescópio não resistirão. "Enfrentamos tremendas dificuldades", diz Preston Burch, diretor de projeto do telescópio espacial. Segundo ele, o Hubble receberá sua derradeira revisão nos próximos meses, com a substituição de componentes que têm vida útil determinada. "Também trocaremos alguns instrumentos científicos por outros mais modernos", diz Burch.

O esforço da Nasa é para que o Hubble tenha uma saída de cena paulatina - e triunfal - até 2013, quan do um foguete será lançado em sua direção: uma espécie de guincho cósmico que o trará para a Terra, mais especificamente para o mar. "Uma grande parte dele irá se desintegrar no momento em que entrar na atmosfera", diz Burch. "O que sobrar cairá em um oceano que ainda escolheremos. Ainda que seja somente um pedaço, será bom tê-lo conosco. Estamos com saudade do Hubble."

ÁLBUM DO HUBBLE

Em quase duas décadas, o Hubble acumula 800 mil observações e nos enviou 500 mil imagens de mais de 25 mil objetos com os quais se deparou no cosmos. Por meio dele foi possível ultrapassar barreiras e conhecer planetas, estrelas e galáxias.

Luciana Sgarbi de Istoé para o Mensageiro da Realidade

Alfred Hitchcock completaria 110 anos em 2009

Você pode ir ao cinema rir, chorar ou até mesmo para se assustar. Neste último caso, não há como negar: o mestre atende pelo nome de Alfred Hitchcock. Se hoje os filmes recheados de mistério e enigmas fazem sucesso nas bilheterias, tenha certeza que a influência do cineasta neste fato é indiscutível.
Em 13 de agosto 1899, há exatos 110 anos, nascia um dos maiores ícones que o cinema já conheceu. Sir Alfred Joseph Hitchcock, ou simplesmente o "Mestre do Suspense", como o próprio se autodenominava. O apelido não era só um slogan para atrair atenção, mas também fez jus ao estilo de cinema criado por esse genial diretor, de personalidade forte, domínio de técnicas e, claro, muita criatividade.
Muitos podem indagar ao ouvir seu nome, Hitchcock não ficou marcado na história pela pessoa que era, e sim por clássicos que deixou entre os seus quase 70 filmes produzidos ao longo da carreira.
Mesmo para quem não é fã das escuras salas de cinema, com certeza já viu esta cena memorável: uma mulher tomando banho, uma mão segurando a faca, suspense, a mão misteriosa abre as cortinas do chuveiro, a mulher grita, o sangue escorre pelo ralo. Tudo isso ao som de um dos temas que mais marcaram na história do cinema.
A cena, interpretada por Janet Leigh, é o marco de "Psicose", filme de 1960, que consagrou seu idealizador como um mestre do gênero. Até hoje essa sequência é lembrada e recriada, em forma de paródia ou como uma singela homenagem, pelo cinema contemporâneo. O estilo "claustrofóbico" criado por Hitchcock mantém sua influência e, sem muito procurar, é possível descobrir uma série de vestígios da sua arte no que temos de mais atual na produção cinematográfica.
A imagem do homem encorpado, sempre bem vestido e que, por vezes trazia um corvo posado em seu ombro, virou lenda ao longo dos anos. Era o retrato de um gênio que adorava tirar o fôlego de seu público.
Sem os litros de sangue que os filmes de horror normalmente apresentam em sua composição, o "Mestre do Suspense" trazia uma trama que prendia o espectador dentro de um clima incômodo e tenso, com os cenários sombrios e a música forte, que só mesmo o cineasta conseguia reproduzir. O segredo era deixar o público avisado de todos os perigos que o personagem iria passar. Aos poucos, a platéia acompanhava, ansiosamente, o desdobramento da história.
Os roteiros assinados por Hitchcock, aliás, eram por si só nada convencionais. Uma pacata cidade atacada por pássaros violentos em "Os Pássaros", de 1963; uma secretária se esconde em um hotel onde ocorre uma série de mistérios em "Psicose", de 1960; um policial que sofre de acrofobia é encarregado de vigiar uma jovem com tendências suicidas em "Um Corpo que Cai", de 1958; fatos estranhos acontecem em frente da janela de um fotógrafo engessado em "Janela Indiscreta", de 1954; marido planeja a morte de sua mulher para herdar fortuna e vingar-se de uma antiga traição em "Disque M para Matar", de 1954.
Isso só para citar alguns exemplos do vasto universo do cineasta. Outra característica bem "hitckcockiana" em suas produções foram as famosas "pontinhas" do diretor em suas obras, o que, mais tarde, se tornou um verdadeiro passatempo para seus fãs, que analisavam meticulosamente cada cena de seus filmes, a procura das participações do ídolo.
Vitimado por insuficiência renal, Hitchcock faleceu em 29 de Abril de 1980. Os frutos deixados por seu trabalho permanecem ativos nas mãos de grandes diretores contemporâneos, que não se cansam de homenagear o mestre.
A linguagem inconfundível de Hitchcock, hoje, pode ser vista presentes em produções de diretores como George Romero, Quentin Tarantino e M. Night Shyamalan. Cineastas que normalmente abordam histórias com muito mistério em sua fórmula.
Shyamalan, por exemplo, faz uso constante da técnica de prender o espectador dentro de um suspense, que aos poucos vai se revelando, enquanto a trama se desenvolve, como fez em "O Sexto Sentido".
Uma forma mais refinada de fazer cinema também pode ser encontrada, ainda que de forma menos direta, nos trabalhos de Francis Ford Coppola, Mel Brooks e Brian De Palma, só para citar alguns entre tantos outros profissionais.
Para se ter idéia de sua importância, é possível encontrar vestígios de Hitchcock até em histórias em quadrinhos. A Turma da Mônica, aqui do Brasil, também foi "vítima" da influência do "Mestre do Suspense". O personagem Bidu, um simpático cachorro da publicação, chegou a interpretar alguns personagens famosos dos filmes de Hitchcock em tirinhas de Mauricio de Souza.
Confira abaixo mais curiosidades:
O primeiro emprego
Sua paixão pelo cinema começou cedo, aos 21 anos. Nascido em Leytonstone, Londres, Hitchcock teve seus primeiros contatos com o universo da sétima arte quando fazia os cartazes das falas em filmes mudos daquela época. Isso ocorreu no seu primeiro emprego na área, já na Paramount Pictures, grande estúdio de Hollywood.
O primeiro filme
Em 1925, após os donos dos estúdios perceberem que da cabeça do aspirante poderia sair coisa boa, conseguiu produzir seu primeiro filme, "The Plesure Garden". Mas foi no ano seguinte que obteve merecido destaque com "The Lodger". Neste longa, baseado nas histórias de morte do famoso Jack, O Estripador, o cineasta deu início ao que de melhor sabia fazer nas telas: suspense, gênero que o consagrou.
Oscar
Já nos Estados Unidos, produziu "Rebecca - A Mulher inesquecível", que de cara recebeu o Oscar de melhor filme naquele ano. Apesar de tanto reconhecimento, é curioso que Hitchcock jamais tenha recebido a estátueta por melhor diretor ou produtor, categoria na qual foi indicado por seis vezes. Apenas foi agraciado, em 1968, com um prêmio honorário da Academia pelo seu conjunto de obra.

Por Karen Lemos

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Afegã


Uma menina afegã de 12 anos, fotografada por Steve McCurry, em junho de 1984, no acampamento de refugiados Nasir Bagh do Paquistão durante a guerra contra a invasão soviética. Sua foto foi publicada na capa da National Geographic em junho de 1985 e, devido a seu expressivo rosto de olhos verdes, a capa converteu-se numa das mais famosas da revista e do mundo. No entanto, naquele tempo ninguém sabia o nome da garota. Steve McCurry realizou uma busca que durou exatos 17 anos. Em janeiro de 2002, encontrou a menina, já uma mulher de 30 anos e pôde saber seu nome. Sharbat Gula vive numa aldeia remota do seu país, o Afeganistão; é uma mulher tradicional da etnia pastún, casada e mãe de três filhas. Ela regressou ao Afeganistão em 1992.



Sharbat Gula, hoje sem aquele enigmático olhar que tanto enfeitiçou, deseja que suas três filhas tenham uma boa educação, pois ela não conseguiu por motivos óbvios. Ela e o marido ignoravam o sucesso da fotografia, pois são pessoas simples e não assistem TV, não lêem jornais e nunca tinham visto a revista National Geographic onde a menina afegã foi capa.

Na ilustração acima, em 2002, durante as gravações para um documentário, Sharbat numa pose que lembra a foto de 1984 e com o marido e filhas, aos 29 anos.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Hiroshima, o maior crime de guerra do mundo


Em agosto o mundo relembra com muito pesar os 64 anos do maior crime de guerra já desferido contra a humanidade. O holocausto nuclear contra as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Crime do qual jamais seus culpados foram sequer acusados, muito pelo contrário, foram saudados como heróis em todo o mundo simplesmente por terem vencido a guerra e movido uma propaganda capaz de fazer o mundo inteiro se esquecer do horror nuclear.

Mas muitos ainda não se esqueceram do verdadeiro culpado dessa verdadeira história de horror, a maior nação terrorista de todo o planeta, os Estados Unidos da América, e provoca o leitor a conhecer um pouco mais sobre o que a grande mídia mundial insiste em fazer-nos esquecer. Os crimes de Hiroshima e Nagasaki. Aqui você verá um pouco do que realmente ocorreu e que pode ser facilmente comprovado por documentos públicos estadunidenses considerados ultra-secretos e que foram recentemente abertos à população.

150 mil civis inocentes são condenados à morte por Harry Truman. Primeira e única nação do mundo a jogar bombas atômicas sobre civis

Em Agosto de 1945 os Estados Unidos da América entraram para a história mundial por ser a primeira e única nação a despejar o terror atômico sobre enormes populações de civis. Com a II guerra mundial praticamente acabada e sem ter podido justificar o gasto de 2.6 bilhões de dólares no Projeto Manhattan (projeto de construção da bomba atômica), Harry Truman busca oportunidades para jogar uma, ou quem sabe até mais, de suas bombas envenenadas sobre cidades inimigas e demonstrar ao mundo o tamanho do poder que os Estados Unidos detinham na mão. O povo estadunidense já estava sendo “envenenado” há muito tempo por sua mídia tendenciosa que os fazia crer que a bomba atômica daria fim a uma guerra e salvaria vidas, já que seus filhos voltariam da guerra. De acordo com Peter Scowen, autor do Livro Negro dos Estados Unidos, “para os estadunidenses, a detonação das bombas em Hiroshima e Nagasaki foram ações militares realizadas contra uma nação despótica que só podia culpar a si mesmo pelo sofrimento de seu povo. (...) Havia até um fervor religioso no desempenho estadunidense, pelo menos na cabeça de Truman: “... Agradecemos a Deus por [a bomba] ter vindo a nós ao invés de nossos inimigos; e oramos para que Ele nos guie para usa-la a Sua maneira e com Seus propósitos...” . Pior que isso, só mesmo uma reveladora pesquisa que mostra o desejo dos estadunidenses em substituir um genocídio por outro. Ainda de acordo com Scowen, “...Uma pesquisa do Gallup feita em dezembro de 1944 revelou que 13% dos estadunidenses eram a favor da eliminação do povo japonês por meio do genocídio...”

Infelizmente para os planos de Truman, a Alemanha havia assinado rendição incondicional em Maio de 1945 logo após o suicídio de Adolf Hitler. A Itália já havia se rendido anteriormente quando da prisão e assassinato de Mussolini. Naquele momento só restara o Japão. Ao ver-se sem muitas alternativas para concretizar seus planos, Truman se apega na última oportunidade que lhe apareceu ao alegar a não rendição incondicional do Japão, que insistia em manter seu reverenciado imperador. Grandes estrategistas de guerra desaconselharam o presidente a utilizar as armas atômicas, propondo como alternativa um grande bloqueio marítimo, aliado à entrada da Rússia na frente do Pacífico e mais os bombardeios focados em alvos militares. De acordo com esses especialistas, essas manobras seriam suficientes para acabar com a guerra até Julho de 1945. Mesmo assim, Truman simplesmente ignorou-os e, utilizando o mote da não rendição incondicional, decidiu o destino de duas cidades e centenas de milhares de vidas humanas.

Alvos escolhidos: Hiroshima e Nagasaki
O plano original previa ataques com bombas atômicas a quatro cidades japonesas. O comitê de alvos do projeto Manhattan decidira atacar Hiroshima, pois segundo as minutas das reuniões desse comitê, em razão de seu tamanho e planta, “... grande parte da cidade seria extensamente danificada...”, Nagasaki e Kyoto, pois, ainda de acordo com essas minutas, Kyoto “...era um centro intelectual do Japão e seu povo é mais capaz de avaliar o significado de uma arma assim...” 1

Assim, no fatídico dia 06 de Agosto de 1945, movidos além de tudo por um sentimento indissimulável de vingança pelo ataque japonês à base militar de Pearl Harbor, aviões estadunidenses se aproximaram do primeiro alvo a sofrer os horrores das armas nucleares. Hiroshima, a então sétima maior cidade japonesa, com 350 mil habitantes, foi atacada por Little Boy, que até o fim do ano de 1945, decretou a morte de aproximadamente 150 mil japoneses, dos quais apenas 20 mil eram militares. Não satisfeitos com tamanha atrocidade e apenas três dias depois do primeiro ataque, como se fosse possível preparar uma declaração total de rendição incondicional em três dias, os estadunidenses atacaram a segunda cidade-alvo no dia 09 de agosto. Nagasaki e seus 175 mil habitantes foram a vítima de Fat Man, segunda e mais poderosa bomba, que vitimou aproximadamente 70 mil seres humanos na contabilidade macabra feita em dezembro de 1945.

Os efeitos nefastos de Little Boy e Fat Man
Se analisarmos brevemente o número de vítimas de little boy e fat man, 40% da população original das cidades de Hiroshima e Nagasaki morreram na contagem feita em dezembro de 1945. Estes números ainda não refletem a realidade do verdadeiro montante de vítimas das bombas, uma vez que milhares de outras pessoas morreram posteriormente em decorrência dos nocivos efeitos da radiação. Em uma comparação meramente ilustrativa, é como se nos ataques de 11 de Setembro, ao invés de terem morrido três mil pessoas, aproximadamente quatro milhões de nova-iorquinos tivessem perdido sua vida no World Trade Center. E isso não é tudo, pois os efeitos da bomba não são apenas a morte e a destruição imediatas. Até hoje continuam morrendo pessoas vítimas de câncer herdado geneticamente de seus pais e avós, além de ser possível encontrarmos ainda hoje, milhares de pessoas com deformações físicas, câncer congênito, problemas de esterilidade e outras doenças decorrentes da liberação radioativa sobre essas cidades em 1945.

De acordo com estudos realizados nos escombros das cidades, praticamente todas as pessoas que estavam até 1 km do centro da explosão foram mortas instantaneamente (86%). As bombas explodiram nos centros das cidades e pulverizaram escolas, escritórios, prisões, lares, igrejas e hospitais. No centro do ataque, tudo virou pó, não havia cadáveres. Mais longe do ponto zero havia corpos espalhados por toda parte, inclusive de bebês e crianças. De acordo com Peter Scowen, “Yosuke Yamahata foi enviado pelo exército japonês para fotografar Nagasaki no dia seguinte ao bombardeio. Suas fotos mostram uma cidade completamente aplainada, homogeneamente alisada. (...) Ele tirou fotos de uma mãe morrendo de envenenamento radioativo e amamentando seu bebê, também à morte; fotos de fileiras de cadáveres, pais tentando, inutilmente, cuidar das queimaduras no corpinho de seus filhos. Yamahata morreu de câncer em 1966, com 48 anos”. As vítimas da radiação apresentam febre e hemorragias arroxeadas na pele, depois surge a gangrena e o cabelo cai. Esta morte dolorosa, tão parecida com o envenenamento por gás mostarda na tortura lenta que provoca, não era coisa na qual os estadunidenses desejariam que o público se concentrasse após o lançamento das bombas, afinal, os Estados Unidos da América haviam assinado tratados em 1889 e 1907 que baniam o uso de “armas envenenadas” na guerra. Pior que isso, os Estados Unidos haviam concordado com uma resolução de 1938 da Liga das Nações que tornava ilegal o bombardeio intencional a civis. Ou seja, com os ataques de Hiroshima e Nagasaki, os Estados Unidos simplesmente ignorou todos os tratados que haviam assinado até então.

Os verdadeiros motivos por trás do bombardeio
Os verdadeiros objetivos por trás dos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki ficaram obscuros durante muito tempo. Na época foi alegada a resistência dos japoneses em aceitar rendição incondicional, já que os Estados Unidos exigia a deposição do imperador japonês e eles não aceitavam essa condição. Dwight Eisenhower, general americano que futuramente se tornaria presidente, disse que “O Japão estava buscando alguma forma de render-se com uma perda mínima de aparência (...) não era necessário golpeá-lo com aquela coisa” 2. Com a recente liberação de documentos e diários antes considerados ultra-secretos, hoje já se pode concluir documentalmente que o principal objetivo por trás dos ataques a Hiroshima e Nagasaki foi a necessidade de enviar uma mensagem clara à União Soviética, que vinha se expandindo pelo leste europeu (Polônia, Romênia, Hungria), de que os Estados Unidos tinham em mãos uma arma poderosa e que não hesitariam em utilizá-la caso fosse necessário. Ainda de acordo com Peter Scowen, “... já em 1944 os americanos haviam considerado a arma um trunfo em suas relações com Stalin e Truman acreditava que uma exibição pública da capacidade da bomba iria tornar a URSS mais manejável na Europa...”. Quanto a motivação do ataque, o próprio governo estadunidense acaba por se contradizer na hipótese de que teria sido a não rendição incondicional do Japão. No dia 10 de agosto, apenas um dia após a explosão de Nagasaki, o Japão entrega sua rendição assinada e os Estados Unidos abandonam a idéia da rendição incondicional alegando que se o imperador continuasse no poder isso permitiria uma ocupação mais ordeira pelas tropas estadunidenses.

Ironicamente, ao contrário do que desejavam os estadunidenses liderados por Harry Truman, a demonstração pública do poder da bomba atômica fez os líderes de todas as nações tremerem, mas, ao invés de ficarem sentados esperando que os Estados Unidos deixasse seu poder nuclear nas mãos da ONU, todos queriam ter tal poder nas mãos, especialmente a União Soviética que, liderada por Josef Stálin, deu início a Guerra Fria e a corrida armamentista nuclear, que só iria arrefecer praticamente 45 anos após os bombardeios, com o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas sob a liderança de Mikail Gorbatchev.

Notas:
1 - Citado por Peter Scowen em O Livro Negro dos Estados Unidos, p. 49
2 - Citado por Peter Scowen em O Livro Negro dos Estados Unidos, p. 51

Leia também:
• A bomba atômica e a era do suicídio globalizado - Flávio Calazans

Livros relacionados ou citados no artigo:

• O Livro Negro dos Estados Unidos - PETER SCOWEN
• LIFTON, Robert Jay e MITCHELL, Greg, Hiroshima in America: A Half Century of Denial, Nova York: Avon Books, 1995.
• Revista História Viva, Ed. Duetto - Ano 2, Número 20, Junho de 2005, Pg.24

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Os Mistérios de Otzi


Otzi, também conhecido como Homem do Gelo, está sendo chamado de "A múmia assassina". O restos mortais congelados foram descobertos em 19 de setembro de 1991, por um turista alemão, Helmut Simon, na fronteira montanhosa entre Itália e Àustria, Alpes

Otzi, também conhecido como Homem do Gelo, está sendo chamado de "A múmia assassina". O restos mortais congelados foram descobertos em 19 de setembro de 1991, por um turista alemão, Helmut Simon, na fronteira montanhosa entre Itália e Àustria, Alpes do Tirol, na região chamada Vale de Otzi (ou Oetzi), que emprestou o nome à múmia.
A notícia sensacional ocupou manchetes de todo o mundo: o achado tinha cinco mil e trezentos anos de idade e estava em inigualável estado de conservação, tanto o corpo quanto os objetos com ele encontrados, como vestuário e utensílios. Cientistas de todo mundo mobilizaram-se para extrair do cadáver o máximo de informações sobre a vida do homem primitivo da Europa Neolítica.
Os primeiros exames começaram a revelar enigmas intrigantes: as roupas apresentaram manchas de sangue cujo DNA mostrou pertencerem a quatro indivíduos. Além disso, o crânio, submetido a raio X, mostrou fragmentos de pontas de flechas. Concluiu-se que Otzi teve morte violenta, por agressão. Ele morreu aos 46 anos, superando a média de vida de seus contemporâneos. Possuía tatuagens numerosas e intrincadas sugerindo que o Homem do Gelo poderia ser um shaman.
A análise dos objetos encontrados produziu resultados estranhos: as flechas que Otzi portava têm sete mil anos; o machado, dois mil anos e a pele do gorro que usava, nos Alpes, pertence a um tipo de caprino que viveu na China, hoje extinto. Estes fatos tornam-se inexplicáveis diante dos estudos sobre a "geografia da vida" de Otzi. Em 11 de novembro de 2003, o site da BBC online publicava:

Resgate de Otzi, em 1991
"Cientistas identificaram o provável local de nascimento de Otzi, o famoso homem do gelo. O antigo caçador provavelmente passou sua infância no local em que hoje é a vila de Feldthurns, no Tirol do sul, região de fala alemã no norte da Itália. As evidências sugerem que as viagens que ele fez durante sua vida ficaram restritas a 60 km de distância ao sudeste de onde seu corpo foi encontrado.
A múmia congelada de 5.300 anos foi descoberta após o derretimento de uma geleira na fronteira montanhosa entre a Itália e a Áustria em 1991. Desde então, cientistas têm feito estudos detalhados de como ele viveu e morreu. A última pesquisa, publicada na revista Science, observou átomos isotópicos encontrados nos dentes e nos ossos do homem de gelo. Eles foram comparados com exemplares de solo e água de uma vasta região dos Alpes. Minerais da dieta alimentar são depositados no corpo em tempos diferentes - nos dentes, por exemplo, durante a infância, e nos ossos, durante a vida adulta. Isso permitiu com que pesquisadores na Austrália, nos Estados Unidos e na Suíça deduzissem onde Otzi viveu em diferentes fases de sua vida.
O grupo acredita que seus movimentos ficaram restritos a alguns vales em uma distância de 60 km a sudeste de onde o corpo foi encontrado. Ele nunca se movimentou ao norte desse ponto e provavelmente cresceu no vale de Eisack, no sul da região do Tirol. Diversos sítios arqueológicos na área delimitada e ao redor da região foram identificados.
Os cientistas acreditam que Feldthurns é a mais provável região onde o homem do gelo passou sua infância. Um pouco mais tarde, ele foi para o norte, para as montanhas de Vinschgau, antes de viajar para o vale de Otiz, onde morreu, aos 46 anos.
Segundo Alexander Halliday, do Departamento de Ciências da Terra de Zurique, "essa é a primeira vez que alguém faz um estudo detalhado da migração de um ser-humano no passado". Parece que ele viveu a maior parte de sua vida em um vale diferente de onde ele nasceu", acrescentou.

Machado e Gorro ede Otzi: Museo Archeologico dell'Alto Adige, Bolzano (Italia)
A pesquisa revela que o homem do gelo passou sua infância nos vales ao sul dos Alpes, antes de migrar para o norte, já na vida adulta. Uma outra opção aventada é a de que o homem do gelo passou seus verões nas montanhas e os invernos nos vales.Esse é um padrão de migração que começou no período neolítico e ainda está em prática até os dias de hoje." [IN http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/
story/2003/11/031031_icemancl.shtml]

As limitações físico-espaciais das andanças de Oetzi, tornam muito enigmáticas as características dos objetos com ele encontrados. Partindo do pressuposto de foi um shaman, há teóricos que já cogitam a possibilidade de Oetzi ser um antigo sacerdote pagão, pertencente a algum culto desconhecido e dotado de habilidades sobrenaturais que lhe permitiram viajar no tempo. Admitindo essa hipótese como verdadeira, a todas estas estranhezas, somam-se fatos sugestivos de que a múmia pode estar "enfeitiçada", ou amaldiçoada.
Tal como no caso de das múmias egípcias, em especial à de Tucancamon, Otzi, se era um místico poderoso, tratou de "fechar o corpo" com algum tipo de praga vingadora capaz de aniquilar qualquer um que lhe toque o cadáver. Essas maldições eram comuns entre os místicos da antiguidade mais remota. Fatos subseqüentes à descoberta do corpo permitem considerar que a maldição de Otzi está em atividade causando a morte daqueles que têm lidado com os restos mortais.
A primeira vítima foi o próprio descobridor, Helmut Simon. Ele havia recebido cem mil dólares como prêmio pela descoberta. Radiante, resolveu voltar ao Vale. O tempo estava claro, tudo parecia bem, porém, subitamente, Helmult viu-se envolto em uma imprevista tempestade de neve. Ele morreu congelado. Foi encontrado caído na mesma posição em que Otzi foi descoberto. O chefe da equipe de resgate que localizou Helmut também morreu: ataque cardíaco, uma hora antes do alemão ser enterrado.
Doutor Rainer Henn, que conduziu a perícia no corpo de Otzi, foi o terceiro, vítima fatal de um acidente com seu automóvel quando se dirigia a uma conferência científica dedicada à descoberta do Homem do Gelo. O quarto amaldiçoado foi o montanhista profissional Kurt Fritz, que organizou uma expedição ao "sítio do shaman". Lá chegando, de helicóptero, estando em uma área que ele conhecia perfeitamente, foi surpreendido por uma avalanche e sucumbiu sob a camada de neve. Outro montanhista que o acompanhava, escapou.
O jornalista austríaco, Rainer Heozel, lançou um documentário sobre Otzi: morreu em dois anos vencido por um tumor no cérebro. Konrad Spindler, chefe de um grupo de estudos sobre a múmia na Universidade de Innsbruck e que sabia dos rumores sobre a maldição, morreu aos 66 anos com uma esclerose incontrolável. Mais recentemente, foi a vez de Tom Loy, 63 anos, especialista que estudava o DNA de Otzi, morreu na Austrália de causa desconhecida.
O fenômeno da maldição de Otzi é semelhante ao caso da maldição da múmia de Tutancamon. Em fevereiro de 1923, uma antiga tumba foi aberta no Vale dos Reis, em Luxor, Egito. Os cientistas encontraram o corpo mumificado do jovem faraó e sua máscara mortuária, feita de ouro.
Algum tempo depois da descoberta, o chefe da equipe arqueológica, Lord Carnarvon morreu vitimado por uma moléstia extremamente dolorosa transmitida por mosquito; na época, porém, muitos acreditaram que a causa mortis verdadeira era "a maldição do faraó". Testemunhas acrescentaram que pouco depois da morte de Carnarvon, seu cachorro começou a uivar e gemer morrendo em seguida; a causa é desconhecida. Logo havia rumores de que a maldição era extensiva a todos os membros da equipe arqueológica. Vinte e cinco pessoas, todos europeus, trabalharam no sítio arqueológico; onze jamais entraram nas tumbas.
O pesquisador Mark Nelson, da Universidade Monash da Austrália, decidiu investigar o que aconteceu com os 14 membros daquela expedição que estiveram expostos à suposta maldição. Apurou que haviam morrido bem antes que os outros mas que, entretanto, nada de extraordinário havia nas mortes, satisfatoriamente explicadas. Mark Nelson concluiu que a maldição de Tutancamon era apenas uma superstição.
Entretanto, nem todos pensam assim e fatos, no mínimo coincidências demais, reforçam a teoria da maldição. Além da morte de Lord Carnarvon, há registros de outras mortes com histórico suspeito. No site Egito Online, o seguinte relato, intitulado "A Maldição do Faraó caiu sobre quem profanou sua tumba", informa sobre estas mortes:
"Com manchetes como essa [A Maldição do Faraó caiu sobre quem profanou sua tumba], os jornais da década de 20 vendiam milhares de exemplares, explorando o que parecia ser uma maldição do faraó Tutancâmon. O tesouro seria maldito, e o fantasma do faraó perseguia implacavelmente os responsáveis pela profanação de sua tumba.
A primeira vítima da maldição do faraó seria o próprio Lorde Carnarvon, que morreu em 5 de abril de 1923, no Egito, poucos meses depois da descoberta da tumba. Vitimado por uma infecção, provocada por uma picada de inseto ocorrida quando visitava o túmulo. Morreu em delírio, gritando o nome de Tutancâmon, no momento exato que um black-out inexplicável atingiu a cidade. Pouco tempo depois, seu irmão, o Coronel Aubrey Herbert também morre, e depois, a enfermeira que cuidava de Lorde Carnarvon.
Começava aí, um rastro de morte e terror que se estendia para muito além das areias do Egito: Arthur C. Mace, do Metropolitam
Museum of Art de Nova York; George Benédite, do Louvre de Paris; Richard Bedell, filho de Lorde Westbury. Todos haviam entrado na tumba e encontrado a morte.
A lista continua: Professor Douglas E. Derry; O Doutor Saleh Bey Hamdi, que haviam feito os exames da múmia; Archibald Douglas Reed, que havia feito os Raios-X. Alguns não aguentaram esperar pelo fantasma vingativo do faraó, o egiptólogo Evelyne White, enforcou-se, deixando a mensagem "Pesava sobre mim uma maldição à qual não tenho mais remédio que submeter-me".
Os jornais especulavam, no final, toda a história da descoberta da tumba de Tutancâmon estava repleta de sinais, profetizando as mortes dos profanadores: um dos trabalhadores disse ao escavar o túmulo de Tut-Ankh-Âmon: "Essa gente encontrará ouro e morte"; quando entraram na tumba, na 2ª porta, um aviso de três mil anos: "A morte esmagará com seus golpes a todo aquele que perturbe o sono do faraó".
Um pássaro, que pertencia a Carter, foi morto por uma Naja, e os trabalhadores começaram a ver nesse fato, um sinal que estavam amaldiçoados. Mas, e Howard Carter? Viveu até os 66 anos e, dizem, sua vida nunca mais foi à mesma. Perseguido pela má sorte, nunca mais teve coragem para procurar outros tesouros.
Uma boa coisa acabou acontecendo por causa da suposta maldição, diversos contrabandistas e colecionadores de peças egípcias, devolviam ou doavam aos museus suas coleções, com medo da maldição que se alastrava.
Muito da maldição é só história; se contesta a veracidade do aviso na porta do túmulo, por exemplo. A verdade é que o irmão de Lorde Carnarvon morreu de velhice, e que algumas vítimas do faraó já estavam muito doentes antes da descoberta da tumba. O pânico se alastrou, bastava trabalhar em um museu e morrer para o nome ser automaticamente relacionado com a maldição. Hoje, alguns sustentam a tese da existência de fungos na tumba, lacrada por três mil anos e sem ventilação; ou de algum veneno espalhado pelos antigos sarcedotes nos objetos."

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Psicanálise e Literatura: A Interpretação




Os estudos das relações entre Psicanálise e Literatura, Psicanálise e Semiótica estão, cada vez mais, na ordem do dia. Essas relações passam, necessariamente, pelo enfoque psicanalítico do texto do paciente e pelo enfoque literário ou/e semiótico do texto artístico, em geral, e mais especificamente, do texto literário, pois também a Psicanálise trabalha com o Verbal. Via interpretação.

A interpretação de textos artísticos e literários foi uma das atividades de análise, exercida por Freud.

Freud declarou que embora não fosse um conhecedor de arte, mas um leigo, no assunto, contudo as obras de arte sempre exerceram sobre ele um efeito poderoso, sobretudo a literatura e a escultura e, menos freqüentemente, a pintura. Passava longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à sua maneira e explicar-se a razão de seu efeito sobre si mesmo e sobre outras pessoas.

Sua dificuldade maior era com a música, pois a inclinação racionalista ou analítica de sua mente insurgia-se contra o fato de emocionar-se sem poder explicar o motivo de tal comoção. Segundo Freud, as maiores criações de arte são incompreensíveis e constituem verdadeiros enigmas. Esse estado de "perplexidade intelectual" pode ser uma condição necessária para a fruição da obra de arte.

Freud, inconformado com essa falta de explicação, dirige sua análise então, para a intenção do artista, não para compreendê-la intelectualmente. Expressa na obra, essa intenção deve despertar em nós a mesma "constelação mental" que no artista produziu o ímpeto de criar.

Assim, a intenção do artista concretizada na obra, no texto, poderia ser compreendida e comunicada em palavras, como todos os outros fenômenos da vida mental.

Daí, segundo Freud, ser impossível compreender uma obra de arte, sem aplicar-lhe a Psicanálise, isto é, interpretá-la, descobrir-lhe o significado e o conteúdo. (Freud, 1992: 497).

Freud declara não ser atraído pelas qualidades formais e técnicas da arte, embora essas tenham mais valor para o artista.

Interessa-lhe saber de que fontes o artista - esse estranho ser - retira seu material e desperta em nós emoções que desconhecíamos. Somos também incapazes, por mais explicações que encontremos, de tornar-nos poetas ou escritores.

Freud levanta a hipótese de procurar, na infância, os traços da atividade imaginativa do artista. Encontra-os na atividade favorita e mais intensa da criança, que são os jogos e o brinquedo.

Ao brincar, toda criança comporta-se como um artista, cria um mundo novo, ajustando em forma nova os elementos de seu próprio mundo .

A antítese do brincar é o real.

O poeta faz o mesmo que a criança ao brincar: cria um mundo de fantasia, leva-o a sério, investe nele grande quantidade de emoção - catexia - e distingue-o muito bem da realidade.

Ao crescerem, diz Freud, as pessoas param de brincar e perdem o prazer da infância.

Mas não renunciam a ele. Trocam-no por outro, pelo fantasiar. Criam devaneios, difíceis de observar, porque os adultos se envergonham de suas fantasias e as ocultam, por serem infantis e, muitas vezes, por serem proibidas.

Conhecemos essas fantasias, porque muitas pessoas, vítimas de doenças nervosas, são obrigadas a revelar a um médico seus devaneios, para serem curadas. A Psicanálise é a melhor fonte de conhecimento das fantasias dos adultos, realizações de desejos reprimidos ( Freud, 1992: 423).

Assim, a ênfase que Freud coloca na infância, ao analisar uma obra de arte como a de Leonardo Da Vinci, por exemplo, deriva da suposição de que a obra literária como o devaneio é um substituto do brincar infantil (Freud, 1992 : 426).

Porque a obra de arte produz em nós prazer, quando o relato direto das fantasias de uma pessoa nos causa indiferença ou até repulsa?

A "ars poética" ou a técnica do escritor ou do poeta - sempre inexplicável para nós - é que nos leva a superar essas barreiras. Ou porque o escritor nos suborna com o prazer puramente formal ou estético que suaviza ou disfarça o caráter egocêntrico de seus devaneios ou porque o escritor nos proporciona um prazer semelhante ao seu, ao devanear: nos deleitamos com nossas próprias fantasias e nos liberamos de tensões (Freud, 1992: 426-7).

Essas idéias levaram Freud a endereçar sua pesquisa psiquiátrica a alguns grandes nomes da História da Arte e da Literatura, fazendo o que ele chamou a "psicografia do artista criador".

Declarou acreditar que "não existe ninguém tão grande que venha a ser desonrado simplesmente por estar sujeito às leis que regem, igualmente, as atividades normais e as patológicas"(Freud, 1992: 428).

Em seu ensaio "O poeta e a fantasia"(1908), que vamos citando, Freud focalizou a relação entre o brinquedo infantil e as fantasias criativas.

Na verdade o título inglês do ensaio "Creative Writers and Day - Dreaming" orientou a tradução brasileira da Ed. Imago "Escritores criativos e devaneios". Mas a palavra Dichter, do título alemão, refere-se tanto a romancistas como a dramaturgos e poetas.

Esse Ensaio é a maior contribuição de Freud para a compreensão da Psicologia da criação artística. Esta é, aliás, a opinião de Peter Gay, na breve introdução que lhe faz.

Freud também interpretou obras de Leonardo Da Vinci, Michelangelo, Dostoievski, Goethe, Shakespeare, Jensen, Hoffmann etc..

O primeiro estudo publicado, sobre obra literária em 1907, foi "Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen".

"Uma recordação infantil de Leonardo Da Vinci", de 1910, é uma biografia psicanalítica.

As considerações que Freud tece sobre a homossexualidade de Leonardo, como um tipo particular de escolha de objeto, como diz Peter Gay em seus comentários, guardam ainda hoje grande interesse (Freud, 1992: 427).

A Psicanálise descreve a psicografia de uma personalidade para compreender complexos e metamorfoses, leis da vida psicológica humana de pessoas célebres para ilustrar a teoria freudiana sobre o Inconsciente.

A Psicanálise não pretende explicar a criação artística, pois para Freud, o poeta é uma espécie de feiticeiro, guiado pela inspiração. As pulsões que levam um artista a criar seriam as mesmas que levam outras pessoas à neurose.

Porém, o artista exprime suas fantasias, torna-as aceitáveis e até prazerosas a outros, realizando os desejos próprios e os alheios.

Embora, o ensaio de Freud sobre "O Moisés de Michelangelo" seja, segundo Dante Moreira Leite, a melhor introdução sobre a maneira freuadiana de interpretar a obra de arte, por tratar-se de uma obra de escultura, não vamos enfocá-la (Leite, 1987: 117).

Vamos deter-nos em obras especificamente literárias. Por exemplo: "Uma lembrança infantil de Goethe" em Poesia e Verdade.

Segundo Freud, Goethe começou a redigir sua biografia aos 60 anos. Narra ele a cena das louças, cena de sua primeira infância. Goethe, com ciúmes de seus irmãos, incentivado pelos vizinhos, joga as louças recém-compradas pela janela, como faria "o filho único", desfazendo-se de seus irmãos.

Freud atribui grande valor às recordações da primeira infância. Um fato que escapa ao esquecimento não pode ser insignificante. Devemos suspeitar que o que foi conservado na memória é também parte importante dos acontecimentos daquela época da vida. Ou já tinha importância naquelas circunstâncias ou adquiriu-a mais tarde, sob a influência de situações posteriores. A fim de reconhecer sua relevância é necessário certo trabalho de interpretação. Na elaboração psicanalítica de uma biografia, muitas vezes, se consegue esclarecer o significado das primeiras recordações infantis. A recordação que se descreve primeiro é sempre a mais importante, a que encerra em si a chave dos compartimentos secretos da vida anímica daquela pessoa.

Mesmo levando em conta que o prazer de Goethe menino fosse causado pelo barulho das louças quebradas, jogar "pela janela" constituí parte importantíssima do ato mágico e de seu sentido oculto. A nova criança deve ser jogada "fora de casa", e, sendo possível, pela janela, que é por onde veio.

Eis o que escreve Goethe:

"Fui um filho de sorte; o destino conservou-me com vida, não obstante ter eu nascido aparentemente morto. Mas eliminou a meu irmão de modo que não precisei repartir, com ele, o amor da mãe" (apud Speyer, 1963: 44).
Goethe encabeçou sua biografia com estas palavras: "a raiz da minha força foi a minha posição privilegiada em relação à mãe" (apud Speyer, 1963: 45).

Freud se serve da análise de um texto literário para confirmar suas teorias, e, neste caso particular, o complexo de Édipo.

Analisa também o tema do parricídio na vida e na obra de Dostoievski, sublinhando o complexo de castração e o sentimento de culpa, processos derivados do complexo de Édipo.

Com o assassinato do pai, a realidade cumpriu os desejos reprimidos de Dostoievski, que passou a punir-se mais violentamente por meio dos ataques de epilepsia.

O ataque epilético é precedido por um instante de máxima felicidade, fixado talvez no sentimento de triunfo.

Semelhante sensação de triunfo e de pesar, encontramo-la retratada na obra de Dostoievski, Os irmãos Karamazoff, depois do assassinato do pai.

A condenação de Dostoievski pelo Czar (o paizinho) como delinqüente político, apesar de injusta, foi aceita pelo escritor, como substituição do castigo de que seu pecado contra seu verdadeiro pai o tinha tornado merecedor.

No romance, Dostoievski cria uma situação semelhante à sua própria: os filhos desejam matar o pai, e este é morto pelo irmão a quem Dostoievski atribui a epilepsia, como se quisesse confessar que o epilético, que havia nele, era um parricida (Freud, 1992: 203-23).

O fato de pesquisas recentes terem descoberto que o assassinato do pai de Dostoievski é duvidoso não tem grande importância. As psicobiografias não pretendem reconstruir a verdadeira infância do artista, mas descobrir que fantasias as obras de arte manifestam.

Ao analisar Os irmãos Karamazoff, por exemplo, Freud descreve a cisão da personalidade de Dostoievski nas várias personagens do romance como no estudo sobre Leonardo descreveu a escolha do objeto narcísico e certa forma de narcisismo.

Em "O tema dos três escrínios", "descreve a relação com os três aspectos maternos: a mãe que dá amor, que se torna uma parceira e que traz a morte. Sugere que a escolha do terceiro escrínio, o de chumbo, que faz Antônio em "O mercador de Veneza", representa a escolha da morte. De modo semelhante, interpreta Cordélia, em "Rei Lear", como símbolo da morte, e a reconciliação de Lear com Cordélia, a reconciliação com a morte". (Segal, 1993: 86).

Freud diz a respeito de suas próprias interpretações de obras de ficção:

"Como, aliás, todo o sintoma neurótico, e como o próprio sonho são possíveis de super-interpretação(1), que mesmo lhes é indispensável para serem exaustivamente compreendidos, assim também qualquer legítima criação poética terá nascido de mais de um motivo, de mais de um estímulo na alma do poeta, e possibilitará mais de uma interpretação. Eu aqui tentei interpretar apenas a camada mais profunda do que se passa na alma do poeta-criador" (Speyer, 1963: 52).
Em outra oportunidade diz a respeito de Shakespeare:

"Consideremos a obra-prima de Shakespeare, Hamlet, peça hoje com mais de três séculos. Tenho acompanhado de perto a literatura psicanalítica e aceito sua pretensão de que somente depois de ter tido o material da tragédia remontado pela psicanálise ao tema edipiano é que o mistério de seu efeito foi por fim explicado. Mas antes que isso fosse feito, que volumes de esforços interpretativos diferentes e contraditórios, que variedade de opiniões sobre o caráter do herói e as intenções do dramaturgo". (Freud, 1992: 497).
Foram feitas muitas críticas a Freud quanto à sua pretensão de atribuir uma única significação verdadeira e mais profunda para a obra de arte de um poeta ou artista criador: a encontrada pela análise psicanalítica. É inegável porém a contribuição da Psicanálise à arte, em geral, e à literatura, em especial, e da Arte à Psicanálise.

A Psicanálise tem tudo a ver com a palavra.

Embora tenha sido Lacan quem reexaminou todo o campo da linguagem, em Psicanálise, centrando-o no conceito de significante - tirado da lingüistica saussuriana - a partir de Breuer e Freud já se destaca o traço da "verbalização", na análise psicanalítica.

No caso de Anna O ., ela curou-se não só pela "tomada de consciência" de seu trauma, mas por ter finalmente falado o que nunca havia dito antes. Foi uma cura pela palavra, como a chamou Anna O .: "talking cure". Curou-se porque conseguiu dizer o nojo que sentiu, ao ver o cão beber água no copo.

As formações do Inconsciente são reguladas pela linguagem. "O Inconsciente é estruturado como linguagem", dirá Lacan. É o que acontece no sonho, cuja interpretação é chamada a via régia da Psicanálise. Texto complexo, sua leitura exige uma atenção particular do analista. É também o caso do chiste que engana a censura, dando a entender o que é proibido, como demonstra Freud em seu artigo: "Os chistes e sua relação com o Inconsciente"(1905). (Freud, 1992: V. VIII).

É o caso dos lapsos de linguagem, dos atos falhos que aludem a um desejo, expressando-o pela metáfora ou pela metonímia.

Aliás, para Lacan, é porque fala que o sujeito se pergunta "Quem sou eu?" e se engaja na busca do ser. Assim, Lacan designa o ser humano como "falasser", porque o ser é um efeito da linguagem.

A Linguagem é importante para o ser humano, na infância, antes mesmo da intenção de significar. O significante não é apenas um efeito de sentido. O "Homem dos ratos", analisado por Freud, é tomado pelo desejo de emagrecer. "Gordo" em alemão é "dick" e Dick é o nome de um rival, de quem o Homem dos ratos queria se desfazer. Matar Dick é o mesmo que "dick" = emagrecer.

O sintoma substitui o que não foi dito. O sintoma, no caso, é o "significante"de um significado, inacessível ao sujeito.

O "Homem dos lobos", também analisado por Freud, é um exemplo conhecido e esclarecedor. Aparece, no tratamento, sempre o mesmo símbolo representado pela letra V ou o cinco romano V. Às cinco da tarde o paciente tinha crises depressivas, em sua infância. Essa também era a hora de uma cena primitiva: ele vira os pais mantendo relação sexual. Teve também conflitos com diversas pessoas, cujo nome começava com V ou W. em sonhos; simbolizando a castração, são arrancadas as asas de uma vespa (Wespe) que ele diz espe ou SP. O V invertido à representa as orelhas dos lobos.

Assim, talvez se devesse fazer referência mais à poética que à lingüística, quando se trata de interpretação. O analista deve estar atento às diversas conotações do significante. A estrutura da linguagem não se esgota na dimensão horizontal: sintaxe e articulação de sintagmas. Mas se torna mais complexa com as figuras ou tropos: metáfora - uma palavra substitui outra - ou metonímia - conexão de uma palavra com outra. Assim se criam novas significações.

Metáfora e metonímia podem ser aproximadas dos processos oníricos: condensação e deslocamento.

O texto literário e o texto do paciente exigem interpretação. Existe sempre um sentido manifesto e um sentido latente, que o analista faz surgir. Esta foi uma das principais contribuições de Freud ao conhecimento do sujeito humano.

Também , no caso dos sonhos, se interpreta o sonho manifesto, para que se revele o sentido latente, escondido freqüentemente sob seus aspectos absurdos e incoerentes, levando sempre em conta as associações do sonhador.

A interpretação jamais deve privilegiar um sentido em detrimento de outros possíveis, devido a cadeias associativas diferentes.

A polissemia caracteriza a linguagem. A poesia, por exemplo, faz ressoar muitos sentidos.

Assim também, o analista evita que suas intervenções sejam entendidas como unívocas. Mas, baseado nas palavras mestras que orientam a história do paciente, o analista faz valer o caráter polissêmico das palavras.

A interpretação apresenta ao paciente novas significações, como acontece na interpretação de um texto literário. O crítico ou analista de uma obra literária jamais afirma que sua leitura é a verdadeira, e muito menos, a única possível.

As aproximações que nos ocorrem a respeito de interpretação psicanalítica e interpretação literária nos fazem lembrar da paródia e da paráfrase.

Geralmente se entende paródia no sentido de burla ou zombaria.

Tomamos paródia no seu sentido etimológico de "canto paralelo". A paródia, neste sentido, é um texto-segundo, que se constrói sobre um texto-primeiro, que lhe serve de suporte. Existe, portanto, a paródia séria, sobre um texto, que o artista admira e respeita e com o qual dialoga, uma espécie de intertexto.

Teçamos algumas considerações apoiadas nas observações de Affonso Romano de Sant'Anna.

A paródia é modernidade. Embora não seja recente, intensificou-se o seu uso.

A paródia se define como um jogo de textos e este aspecto é que nos interessa, no momento. Um jogo de textos em que os dois planos aparecem deslocados. Emprega-se a fala de um outro, no caso da Psicanálise, do Inconsciente. A segunda voz, depois de se ter alojado na outra fala, obriga-a a decifrar-se.

A paráfrase não acentua esse aspecto de deslocamento. Ela traduz. Colhendo um conhecido exemplo literário, segundo Sant 'Anna:

Texto original: Gonçalves Dias:

Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá
As aves que aqui gorjeiam
Não gorjeiam como lá
Paráfrase - Carlos Drummond de Andrade - "Europa, França e Bahia"

Meus olhos brasileiros se fecham saudosos
Minha boca procura a "Canção do Exílio"
Como era mesmo a "Canção do Exílio?"
Eu tão esquecido da minha terra...
Ai terra que tem palmeiras onde canta o sabiá!
Paródia - Oswald de Andrade - "Canto de regresso à Pátria"

Minha terra tem palmares
onde gorjeia o mar
os passarinhos daqui
não cantam como os de lá.
Na paráfrase de Drummond, o deslocamento é mínimo e ele usa uma técnica de citação ou transcrição. No texto de Oswald, o distanciamento é grande e ocorre um processo de inversão de sentido.

A paródia está do lado do novo, do diferente; a paráfrase, do lado do idêntico, do semelhante. A paródia contesta. A paráfrase é conservadora.

Na paráfrase alguém está abrindo mão de sua voz para deixar falar a voz do outro. Na paródia, busca-se a fala recalcada do outro.

A paráfrase é um discurso sem voz, pois está falando o que o outro já disse. Não há a tensão entre os dois jogadores. A paródia é uma disputa aberta de sentido, um choque de interpretação.

Pode-se também explorar a relação que existe entre paródia e representação. A representação na literatura está ligada ao drama e ao teatro; mas, na psicanálise, representação é re-apresentação.

A re-apresentação psicanalítica é a emergência de algo que ficou recalcado e agora volta à tona. É como o que ocorre no sonho. O sonho nos re-apresenta algum desejo não realizado no dia-a-dia. O sonho nos possibilita desrecalcar e liberar nossas tensões. O texto paródico faz uma re-apresentação do discurso. A paráfrase é uma espécie de espelho. A paródia é uma lente que exagera os detalhes de tal modo que pode converter uma parte num elemento dominante. Ela procura decifrar o enigma da Linguagem, busca a diferença e autonomia. (Sant'Anna, 1988: cap. 5 e 6).

Em certos casos, no contexto psicanalítico, o doente sofre de uma afasia sensorial e não pode pronunciar a palavra; permanece na paráfrase enquanto repetição, e não encontra o sinônimo.

Lembremos a afirmação de Heidegger: "A linguagem é a casa do ser" e, portanto, as patologias da linguagem são sintomáticas das patologias do ser e estas sempre se manifestam na linguagem.

Olga de Sá