sexta-feira, 10 de outubro de 2008

O real e o horrendo na literatura infantil


As histórias, todos o sabem, são os primeiros contatos das crianças com a vida. Através delas, a inteligência infantil transpõe os limites do ambiente doméstico e apreende as noções iniciais sobre a sociedade humana, com as inúmeras diferenciações que comporta, as atrações que oferece, os deveres que impõe, as decepções que traz, e o jogo complicado das paixões nos altos e baixos desta grande luta que é a existência. “Militia est vita hominis super terram” [A vida do homem sobre a terra é uma luta], diz a Sagrada Escritura (Job 7,1). “Militia”, sim, em que uns lutam por seus interesses pessoais, legítimos ou ilegítimos, e outros lutam contra o mundo, contra o demônio, contra a carne, para a maior glória de Deus.
Daí haver importância essencial, para uma civilização católica, em proporcionar às crianças uma literatura profundamente e sadiamente religiosa. Não falamos apenas do curso de Catecismo e História Sagrada, que deve ser o centro de tudo, mas de histórias que fossem como que o comentário, o prolongamento, a aplicação do que a Religião ensina.
Isto, em termos de boa doutrina, é o normal. Quanto é evidente, porém, que a caudal da literatura infantil moderna está longe disto!
Desejando tratar hoje da literatura infantil nesta seção, que não é de crítica literária, fazemo-lo analisando algumas destas ilustrações.
Antes de tudo, uma composição de Walt Disney. É a Cinderela, que vai com seu Príncipe rumo ao castelo encantado. É o maravilhoso na literatura infantil.
Haveria restrições a fazer. Em princípio, o que se oferece à criança deve tender a amadurecê-la, sob pena de não ser inteiramente sadio. Alguma coisa no cocheiro, no lacaio, na estrutura do morro e dos edifícios dá idéia de coisa feita não só para crianças, mas por crianças. E isto se nota, embora menos claramente, nos outros elementos da cena.
Mas, feita esta reserva, como não elogiar o gosto, a delicadeza, a variedade desta composição? O maravilhoso, indispensável nos horizontes infantis como meio de apurar o senso artístico, elevar o espírito, abrir o descortinio, estimular sadiamente a imaginação, está aqui expresso com um tato e um gosto notáveis.
* * *
Passemos agora do maravilhoso para uma representação da vida quotidiana, com seus aspectos calmos, caseiros, simpáticos — outro elemento essencial nos horizontes da literatura infantil, para despertar a atração, o interesse pela realidade e pela virtude.
Aqui está uma conhecida ilustração do Juca e Chico. No alto do telhado, os dois meninos das “sete travessuras” estão “pescando” as galinhas da Viúva Chaves. Junto ao fogão, ladra assustado o fiel cãozinho. Os “dois meninos malcriados, esses dois endiabrados” que “põem toda a gente maluca”, representam com real expressão a traquinagem tão freqüente na vida caseira. Traquinagem tratada aliás, no livro, não sem uma exemplar severidade: “lede esta história e vereis a sorte dos dois”. Exceção feita dos traquinas — e talvez nem isto —, tudo evoca a atmosfera feliz, calma, modicamente farta, da vida doméstica popular. Louçania de alma, temperança, largueza, bem-estar sensato na própria mediania, tudo aí se exprime.
Vem depois a literatura malfazeja. Apresentamos um entre mil. Murros, tiros, assaltos, agressões, vibração exagerada, narração melodramática, corre-corre, sangue, morte, “super-homens” que manipulam raios — toda uma sinistra e ridícula contextura de inverossimilhanças, de crueldades, de grosseiros artifícios de sensacionalismo.
Com isso não se forma um homem, e muito menos um cristão. O produto próprio desta literatura é o neobárbaro...
Catolicismo nº 40 — abril 1954, Excertos da seção Ambientes, Costumes, Civilizações
Nota da Redação: Se na década de 50, comentando uma cena de história em quadrinhos da época, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira previu que o “produto próprio” de tal “literatura é o neobárbaro”, pode-se imaginar o juízo muito mais severo que ele faria das aventuras de Harry Potter! Esta literatura é própria a criar na alma infantil e juvenil uma conaturalidade com algo muito pior que a barbárie: o monstruoso, o horrendo e, por fim, o diabólico e infernal.
Deturpação do instinto religioso e do conceito de realidade
Miguel Beccar Varella
A saga de Harry Potter destina-se sobretudo a um público infantil pré-adolescente. É a idade em que as crianças começam a descobrir o mundo fora do círculo familiar, a idade da introdução à vida em sociedade, quando encontram os primeiros amigos. Também sua religiosidade começa a descobrir na Igreja Católica uma sociedade perfeita que leva a Deus. O idealismo generoso destes anos aspira a transformar o mundo numa antecâmara do céu, como diziam os medievais.
Porém, ao mesmo tempo em que estas almas se abrem às realidades sociais, com aspirações de heroísmo e de santidade, elas são ainda muito imaturas, e as influências que recebem do novo mundo, no qual começam a entrar, freqüentemente são decisivas na sua formação.
A literatura do gênero Harry Potter mostra um mundo povoado de demônios e de homens perversos, escravos do mal. Esse mundo está em contínuo contato com o mundo dos trouxas, no qual vivem os meninos normais.
Isso provoca, de modo mais ou menos fatal, uma sensação de impotência ante tais forças superiores. Por outro lado, os meninos bruxos — seres superiores, como Harry Potter e seus amigos — conhecem feitiços, fórmulas mágicas, fetiches de todo tipo para conjurar o perigo.
Ao longo das incontáveis páginas dos livros de Harry Potter, vai-se criando no subconsciente do leitor pré-adolescente um estado de medo e ao mesmo tempo de fascinação. Um instalar-se no horror. O jovem leitor descobre um mundo de bruxos e de demônios que penetra a toda hora na banalidade de sua vida quotidiana, a qual é bem semelhante à do desprezível trouxa.
E a grande e triste novidade na obra sobre Harry Potter é que se trata não apenas de uma agressão à imaginação infantil (como o são desde há anos os gibis, com toda espécie de monstros), mas também à inteligência conceptual, que começa precisamente a despertar nessa idade. Daí a tão comentada, — e erradamente elogiada — novidade de tratar-se de um longuíssimo texto, sem figuras, que apela diretamente à inteligência.
Uma das características mais graves da sociedade atual é a ausência crescente de uma formação religiosa da infância. Começam a manifestar preocupação sobre isso até mesmo alguns membros da Hierarquia eclesiástica em diversos países. Fala-se cada vez mais de uma volta ao paganismo.
Porém, por mais carente de formação religiosa que uma alma possa estar, não se apaga nela o instinto natural que as faz voltarem-se para Deus. O paganismo não é ausência de religião, mas sim ausência da verdadeira Religião. E na presença do demoníaco e do preternatural, é próprio da psicologia imatura das crianças retroceder a uma atitude de fatalismo pagão, ante forças superiores que não consegue dominar.


Plinio Corrêa de Oliveira