quarta-feira, 30 de junho de 2010

MADAME ZOARA - CONTO VENCEDOR DO II CONCURSO DE CONTOS SESC - CRATO-CE

MADAME ZOARA

Nelson Silva

Talvez madame Zoara não houvesse sido capaz de prever o seu próprio destino, mas o fato é que, chovesse ou fizesse sol, lá estava ela a erguer sua exótica tenda todo santo dia, no olho do furacão de um caldeirão comercial localizado em um dos corredores mais apinhados de gente da cidade. A armação de ferros e alumínios opacos sustentava uma horrenda lona azul, sobre a qual repousavam meias-luas, sóis e estrelas pintadas à mão, em um tom amarelado, semelhante a um universo tirado dos delírios de Lewis Carroll. Mas o artista bem que poderia ter sido um dos pequenos que a acompanhavam na extenuante tarefa: uma menina em idade púbere e dois garotinhos, já familiarizados com os curiosos olhares passageiros daqueles que se diluíam no torvelinho diário de pedestres apressados.
A soberba mulher trajava-se magnificamente bem, com um rubro lenço de seda na cabeça e portentosas argolas de prata dependuradas nas orelhas africanas. As mãos eram ornamentadas com pontiagudas unhas escarlates que por sua vez prenunciavam dedos atapetados de anéis vulgares, mas que ela dizia terem sido desembarcados da Mesopotâmia. Um sobrenatural vestido de cigana, trazido da Andaluzia, cobria-lhe o corpo magro, ligeiramente curvado para a frente, numa direção impossível. Colares de nuances psicodélicas, repletos de referências astrais adornavam-lhe o pescoço etíope e os pés, descalços, denunciavam sua estreita ligação com a Mãe Natureza. Memento homo quia es puluis etin pulverem reverteris.
Os meninos, coitados, assemelhavam-se a cãezinhos sacrificados em seu altar, cabelos desgrenhados, maltrapilhos. A mulher, como não se poderia deixar de perceber, dedicava maior atenção à mocinha, mas esta, recém-saída de uma conturbada infância, demonstrava um olhar resignado, como se houvera deixado um brinquedo muito querido esquecido no porão do tempo. Ao final da complexa operação, eles colocavam uma grotesca placa feita de material indetectável severamente castigada pelas intempéries, onde se lia, em letras garranchudas: Madame Zoara – descendente dos Caldeus, a primeira linhagem de astrólogos da Humanidade. E, como que para garantir a receita do empreendimento, uma tigela de flandres era posta na calçada com o propósito de receber moedas atiradas pela caridade alheia. A cada novo tilintar os meninos urravam de alegria, deixando nos passantes uma gratificante sensação do dever cumprido.
O espaço que madame Zoara ocupava fora cedido pelo proprietário de uma loja vizinha, um sujeito eternamente agradecido por ter sido galardoado com um prêmio de loteria após ter posto em prática os ensinamentos propostos pela feiticeira. Mas ele não era tão grato assim, visto que não permitia que ela dormitasse ali com a sua matilha de crianças sujas. Então, quando o sol se precipitava por detrás dos edifícios, a tenda era desarmada e o grupo dirigia-se para um lar improvisado, construído com nacos de madeira e papelão extraídos do lixo, sob uma marquise abandonada numa praça ali perto. Banhavam-se com a água fétida da fonte de um velho chafariz, com a qual também cozinhavam o parco alimento da família. O minúsculo bunker não comportava a todos e a esquisita mulher dormia fora do abrigo, exposta à gélida temperatura da madrugada.
Mas quem fora afinal, madame Zoara? Ora, dir-se-ia, uma respeitável celebridade esotérica que soubera escalar com afinco o topo da pirâmide social. Seus mapas astrais e suas previsões ganharam credibilidade após impressionantes êxitos de seus prognósticos sobre vários assuntos. Sua notoriedade alastrara-se na alta roda. Não há muito tempo seria possível constatar em sua lista de clientes um grande número de personalidades pertencentes a diversos segmentos da sociedade. Chegara mesmo a apresentar um programa de televisão de grande audiência onde desfilava seu rol de atividades adivinhatórias. Todos desejavam saber aonde investir suas fortunas, que direção dar a este ou àquele empreendimento, com quem desposariam suas ninfetas poços de soberba, que cavalo cruzaria a reta final e até se seriam eleitos para os cobiçados cargos públicos, o que lhes dava o direito de apoderar-se do tesouro nacional. Tudo, evidentemente, a peso de ouro. Em suma: ela detinha nas mãos o destino de poderosos. Ninguém saía de casa sem a benção de madame Zoara.
Até que sobreveio a maldição.
A sorte começou a mudar paulatinamente: primeiro ela foi desmoralizada em público diante de milhares de espectadores acerca de um caso de sequestro cuja vítima fora esfolada viva, causando comoção em todo o país. Na ocasião, ela previra que a polícia estouraria o cativeiro e o refém sairia com vida do incidente. De outra feita, um conhecido magnata da soja perdera parte da fortuna ao aplicá-la em um lugar escuso onde a prestidigitadora indicara. Um outro morrera em um acidente aéreo após estar convicto de que a travessia do Atlântico a bordo de um lear-jet estalando de novo seria uma viagem segura. E teve aquela moça que sucumbira a um câncer mesmo estando curada. Afora muitos outros casos que foram, digamos assim, abafados para não causar constrangimento aos envolvidos.
Madame Zoara caíra então repentinamente em desgraça perante seus ricos admiradores. E quão difícil seria provar que a causa de tantos infortúnios não emanasse das profundezas do ectoplasma de sua bola de cristal.
Articulara-se nos bastidores uma guerra infame contra madame Zoara a ponto de se organizar uma pesada campanha de difamação e um ardoroso processo de calúnia com o objetivo não só de demolir o mito, mas também fazê-la sentir na carne os dissabores que hipoteticamente causara aos seus endinheirados amigos. Foram além: raptaram seus meninos usando-os como moeda de troca pela assinatura de papéis que a usurpavam de todos os seus bens. E como se não bastasse, um incêndio criminoso consumira sua luxuosa mansão. As labaredas, vistas durante à noite evocavam as fogueiras medievais onde as bruxas ardiam nas chamas para pagarem seus pecados. Nada mais apropriado, pois.
Durante a perseguição porém, madame Zoara manteve-se imperturbável. O incomensurável gigante que se levantara contra ela dispunha de muitas armas e não seria apenas sua armadura de fé incondicional nos poderes eternos que iria derrotá-lo e destituí-lo de seu intento assim tão facilmente. Antes que o pior acontecesse, ela optou por uma retirada estratégica, voando para Houston - Texas, com as crianças, eclipsando-se por lá durante um bom par de anos, até que a poeira baixasse.
Ao regressar da América, madame Zoara passara a levar a vida miserável que todos conheciam, tornando-se a folclórica figura que cruzava a praça todos os dias, com sua tenda e seus meninos. Ela constatara que no meio do povo não tinha apenas detratores, mas ainda muitos fãs que torciam por sua recuperação, além do que, alguns jornais ainda a procuravam, o que servia de publicidade gratuita para seu pequeno negócio naqueles tempos pesados.
Madame Zoara voltara às manchetes meses depois, protagonizando uma fantástica notícia desencavada por um repórter mais astuto: ela estaria movendo um processo contra a agência espacial norte-americana, a Nasa, por esta ter alterado seus mapas astrais ao fazer colidir um projétil da sonda Deep com o cometa Temple-1, que passeava na vizinhança terrestre à época em que começaram a eclodir as acusações contra ela. A mudança de rota do corpo celeste, causada pelo impacto – alegava ela – teria feito um estrago no céu particular de seus clientes, repercutindo nos infortúnios que a levaram ao seu inferno astral. O processo consumira uma pequena fortuna, que ela manteve a salvo de seus inimigos na fuga para o grande país anglo-saxão. Quando finalmente acabou o dinheiro, madame Zoara não teve outra alternativa a não ser retornar ao Brasil e aguardar o resultado do júri na corte americana em meios aos cães, que tão bem lhe faziam companhia na sarjeta.
Numa daquelas gélidas madrugadas, Madame Zoara e suas crianças foram trucidadas a tiros em seu bunker na praça.
E absurdo dos absurdos: ela ganhara a causa apenas alguns dias depois.