sábado, 6 de junho de 2009

Antropocentrismo literário

"Reportagem social". Assim define o jornalista, Bernardo Kucinski, o conteúdo da revista Realidade. Criada em abril de 1966, em plena ditadura militar, a revista abordava assuntos questões sociais que, até então, eram ignorados por outros veículos e pela própria sociedade. Kucinski acrescenta que era um "jornalismo com ambições estéticas, inspirados no new journalism norte-americano, numa técnica narrativa baseada na vivência direta do jornalista com a realidade que se propunha a retratar".

Mas outra marca relacionada à revista era o "jornalismo texto". Terezinha Fernandes menciona em sua tese que com a criação da revista, o "repórter podia finalmente criar modos de representação verbal diferentes dos modelos importados". Ela ressalta também que o trabalho do jornalista era participar da vida do personagem, de maneira que o próprio repórter se transformava num personagem. Isso explicava a riqueza dos detalhes na narrativa. Em outras palavras, o trabalho da Realidade era transformar em texto acontecimentos sociais.

O que pode parecer uma conclusão óbvia, não é, se analisada a época em que a revista foi lançada. O preconceito e o moralismo eram muito fortes. Os militares censuravam tudo e todos. As pessoas não podiam deixar transparecer um pensamento que, suspeitava-se, ser esquerdista ou qualquer coisa que pudesse perturbar a "ordem e os bons costumes" da sociedade no contexto em que o Brasil vivia.

Roberto Civita, editor da revista - o primeiro foi seu pai Victor Civita - tinha um lema: priorizar o lado positivo do Brasil. Victor Civita, no editorial do primeiro exemplar, disse que queria comunicar a "fé inabalável no Brasil e seu povo". Isso nem sempre era possível, mas sempre procuravam fazer. Roberto era um editor autoritário. O repórter José Hamilton Ribeiro, um dos pioneiros da revista, relembra o apelido dado ao editor: 51%, porque no final era sempre sua opinião que predominava. Salvo esse autoritarismo, que na maioria relevavam, os repórteres tinham autonomia em suas reportagens.

Humanizando a reportagem

"O homem era o centro dos fatos" em Realidade. É possível observar isso em praticamente todas as reportagens. Ao descrever uma floresta, uma cidade, o espaço, enfim, isso somente ganhava vida quando os pés descalços do seu Sebastião, ou aquela pobre e desmazelada criança entrava em cena. A paisagem, por mais bela e detalhada que fosse pelo jornalista, na maioria, era apenas o palco, o cenário para o personagem principal: a realidade.

Victor Civita, no primeiro editorial, informou aos leitores qual seria o objetivo e a linha editorial do veiculo: "O Brasil vai crescendo em todas as direções. Voltado para o trabalho e confiante no futuro, prepara-se para olhar de frente os seus muitos problemas a fim de analisá-los e procurar solucioná-los." Victor continuou delimitando que a revista fora criada para "homens e mulheres inteligentes que desejam saber mais a respeito de tudo".

Paulo Patarra era o redator-chefe, apoiado por Sérgio de Souza, Narciso Kalili, Luiz Fernando Mercadante, Woile Guimarães, Alessandro Porto e os fotógrafos Roger Bester e Walter Firmo. Os repórteres José Hamilton Ribeiro, Carlos Azevedo, Eurico Andrade, Audálio Dantas, Múcio Borges da Fonseca, Roberto Freire, Roberto Pereira, entre outros, reforçavam o time. As edições ainda contava com personalidades como Carlos Drummond de Andrade, Nélson Rodrigues, Adoniran Barbosa, Carlos Lacerda, Paulo Francis e Plínio Marcos. Até Frank Sinatra cedeu uma contribuição a revista fotografando uma luta ímpar de Muhammad Ali, acompanhado do repórter, ator e político Norman Mailer.

Falando em fotografias, esse era um ponto forte de Realidade. Fotos grandes, algumas ocupavam duas páginas, reforçavam ainda mais o assunto. Muitas vezes elas chocavam. Como no caso de uma reportagem sobre a mulher brasileira, em que um parto foi fotografado - de um "angulo ginecológico". Essa edição foi apreendida dois dias depois de ir às bancas a pedido de dois juizes de Menores. Outro fator que impediu a circulação foi o conteúdo da reportagem. Nela, muitas mulheres quebraram tabus e falaram sobre infidelidade, sexo, virgindade, casamento e aborto. Os juizes julgaram o "conteúdo indigesto". Foi uma das edições mais polêmicas da revista. O caso se arrastou por 20 meses, até que a edição foi liberada.

Uma inovação da medicina foi mostrada na matéria de abril de 1966, intitulada "Os dias da criação". O fotógrafo sueco, num trabalho que demorou sete anos, fotografou um feto de quatro meses e meio dentro do útero. Uma imagem realmente fascinante para a época.

Comparando com as revistas atuais, e guardada as devidas proporções históricas, nenhuma chocou tanto quanto Realidade. Se levada em consideração à época, o choque é maior ainda. Mas esse era o objetivo da revista, mostrar a realidade, nua e crua. Algumas vezes ela vinha nua, como numa reportagem sobre seios da edição de junho de 1972, "Normalmente há sempre 1 de cada lado", em que mostrava muitos seios. Aquilo para a sociedade era um escândalo. Outra vezes era crua. A reportagem sobre a Amazônia mostrava imagens de uma onça totalmente sem a pele e ensangüentada, em carne viva.

Exercendo a função de reportagem social, muitos assuntos como fome, miséria, guerras, religião e política sempre eram pautados. A edição de outubro de 1969 trouxe um ensaio fotográfico mostrando o sofrimento da população, maior vítima da guerra na África.

Mas nenhuma experiência foi tão vivenciada pelo jornalista como na edição de maio de 1968, "Estive na Guerra". O repórter José Hamilton Ribeiro participou da cobertura da guerra do Vietnã, e acabou fatalmente pisando numa mina terrestre perdendo parte da perna esquerda. O repórter descreve todo o sofrimento e recuperação. A matéria mostrava uma foto do jornalista ferido.

Reconhecimento

Em seus 10 anos de existência, oito prêmios Esso foram conquistados: "Brasileiros go home" (1966), "Os meninos do Recife" (1967), "A vida por um rim" (1967), "Eles estão com fome" (1968), "Do que morre o Brasil" (1968), "Marcinha tem salvação: amor" (1969), "Amazônia" (1972) e "Seu corpo pode ser um bom presente" (1973). E ainda ganharam o Prêmio Sudene, pelo especial sobre o Nordeste. Entre esses, três foram conquistadas por José Hamilton Ribeiro.

O repórter José Hamilton Ribeiro lembra outro reconhecimento atribuído ao periódico. "Em Portugal, a revista tinha sido adotada em classe 'como livro de texto de português'." Estava sendo criada uma "geração Realidade".

Falecimento

Em 1968, veio então o temido AI-5 e, junto com ele, a sentença de morte da revista. Como a Realidade "era então uma forte 'instituição política'" sofreu forte censura. Os assuntos polêmicos que costumavam abordar em cada edição foram proibidos. Nessa época, a tiragem da revista chegava aos 500 mil exemplares. Roberto Civita tinha como objetivo chegar a um milhão de exemplares. Se não fosse o AI-5, provavelmente teria alcançado.

Com a decadência e a censura controlando as pautas e os textos, os jornalistas foram se demitindo, até que toda a equipe se desmanchou. Aproximava-se o fim.

Uma última tentativa foi feita para reerguer a revista. Conseguiram reunir alguns integrantes da antiga equipe. Na nova fase, era dirigida por Luís Fernando Mercadante, Luís Carta e José Hamilton Ribeiro. Entretanto, ela não tinha o mesmo brilho. Era apenas "uma revista a mais. Não era mais importante. E não era útil, nem necessária. Por que, então, haveria o leitor de procurá-la?", indaga Woile Guimarães.

Woile Guimarães, um dos editores da "segunda fase" da revista, comenta que os leitores pararam de comprar porque "a revista os traiu, porque eles já não encontravam nela as leituras de antes".

Ribeiro achava que a "editora devia ter fechado Realidade que, apesar de tudo, ainda tinha imagem e uma sensação de carisma. E fechado dignamente, explicando exatamente porque o fazia, que engrandeceria a Editora". Fazendo isso, "Realidade morreria com dignidade".

O exemplar de janeiro de 1976, "1976, Excepcional", teve uma tiragem de apenas 120 mil exemplares. Dois meses depois, a revista seria fechada. Como explicação, a Abril disse que faria o lançamento de outra revista. Mas esse lançamento nada teria em comum com, a partir daquele momento, extinta Realidade. Era o fim de uma revista que marcaria um período da história. Um período de uma dura realidade.

Por Vanessa Candia

Leituras da Revista Realidade

Impressões de um periódico pioneiro
A contribuição e participação do leitor na revista Realidade

Criada em abril de 1966, a revista Realidade marcou época no jornalismo brasileiro. Inspirada no conceito norte-americano de new journalism e com reportagens ousadas em sua forma e conteúdo, obteve sucesso imediato, mesmo em um país sem grande tradição de leitura como o Brasil. Enfrentou tabus, cobriu guerras e abordou questões sociais até então pouco discutidas por outros veículos de mídia e pela própria sociedade. Ao mesmo tempo impulsionada e influenciada pelas manifestações políticas e de contracultura do fim da década de 60, a revista também sofreu com a repressão da ditadura militar que na época se consolidava no Brasil.

Em Leituras da revista Realidade, Letícia Nunes de Moraes se debruça sobre o relacionamento da publicação com os leitores, a forma como estes reagiam às matérias veiculadas - em sua maioria de grande impacto, e não raro, escandalizando certos setores da sociedade. A participação do leitor é evidenciada pelas mais de 700 cartas analisadas pela autora, todas elas datadas da primeira (e mais importante) fase da revista, que vai de seu surgimento em abril de 1966 até a instituição do AI-5 pela ditadura militar em dezembro de 1968.

Haveria espaço hoje para periódicos nos moldes da Realidade? Quais são os rumos do jornalismo hoje tal como ele se encontra? Estas e outras são apenas algumas das diversas reflexões que a obra desperta no leitor, além de ajudar entender como e o quê tinha essa revista para que edições com tiragens de 200 mil exemplares se esgotassem em apenas três dias.

Sobre a autora: Letícia Nunes de Moraes é formada em Jornalismo pela PUC-SP e em História pela USP.