quinta-feira, 26 de março de 2009

25 de Março: Dia do Maracatu Cearense
















(...) Ô Maria, chama o pessoal, o nosso maracatu, ô Maria, já vai começar... O terreiro tá em festa, hoje é noite de luar, quero ver você, ô Maria, maracatucar, ô, maracatucar, ô, maracatucar.










Marcos Gomes sobe na cadeira para trocar a lâmpada dentro da sede do grupo Maracatu Az de Ouro, enquanto lá fora, na calçada-palco da rua Edete Braga, alguém alinha os fios e mexe nos botões da mesa de som. São quase 7 da noite, horário previsto para o ensaio de domingo. Maracatu ou cambinda, termo da linguagem banto que significa “ir adiante, ir além”, “dança”, “batuque”, entre outras definições, é um cortejo – dança dramática – que re-interpreta os impérios portugueses e as reinages francesas (instituições tradicionais da Europa que coroavam anualmente seus reis), convergindo às tradições africanas. Deriva das nações do Rei do Congo e do Alto do Congo. A instituição Rei do Congo, criada na segunda metade do século 17, tinha por finalidade executar a parte administrativa e a representação do ato dos congos (teatro, música e dança). Os escravos coroavam seus reis e rainhas às portas da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em Recife, e à frente da igreja homônima (construída no século 18) em Fortaleza, na praça dos Leões.
Maracatu Az de Ouro. Foto - acervo Afrânio Rangel & Casa da Memória EquatorialO Az de Ouro foi fundado em 1936 pelo tecelão cearense Raimundo Alves Feitosa. “Boca Aberta”, como era conhecido, voltou de Recife – onde trabalhara por três anos – com a idéia de criar o seu próprio maracatu. No Carnaval de 1937, em Fortaleza, o Az de Ouro desfilaria na avenida Domingos Olímpio com 42 participantes, usando adereços de morim e renda, costurados pela irmã de Feitosa e pelo alfaiate, e também fundador, Raimundo Nêgo. Pessoas começam a se aproximar. Um senhor de barba branca recebe os cumprimentos dos amigos: é o Juca do Balaio, brincante mais antigo do Az de Ouro. “Eu funciono com o maracatu desde 1940. Tenho 82 anos e ainda levo esse barco pra frente.” Juca narra a história do grupo, os desafios, a evolução. Lembra da facilidade que Raimundo Feitosa tinha para compor letras: “Numa conversa da gente, ele criava uma loa. Depois eu fiquei com esse espírito dele, fazendo o mesmo trabalho”. Juca é o ancião – todos fazem questão de ir até ele e ouvir suas palavras.
Balaieiro - Xilogravura: JoãoPedro do Juazeiro do Norte Balaio é o chapéu de frutas que o personagem (balaieiro) de Juca leva na cabeça durante as apresentações. Simboliza a fertilidade da terra: “O que a gente leva de fruta representa também o que os escravos levavam, porque naquela época não existia transporte, nem nada. Eles levavam na cabeça o balaio de fruta para vender nas casas, nas cidades. Eram os vendedores de frutas chamados ‘pregoeiros da liberdade’”. O ator Sílvio Gurgel lembra que, há muitos anos, quando terminavam os desfiles, os participantes do cortejo tiravam todas as frutas e comiam, “mas hoje não, porque o balaio é feito de plástico para ficar mais leve e mais prático”. O grupo de Feitosa não foi o precursor do maracatu em Fortaleza, vez que no final do século 19 já havia registros da dança narrados pelo escritor Gustavo Barroso (1888-1959). No livro Coração de Menino, de 1939, ele conta suas lembranças juvenis dos maracatus do Outeiro e do morro do Moinho, que desciam para a cidade em “filas de negros cobertos de cocares escuros, com saiotes de penas pretas, dançando e cantando soturnamente ao som dos batuques e maracás”. Essa constatação, no entanto, não exclui o papel do “Boca Aberta” no incremento do maracatu cearense. Durante décadas, o grupo Az de Ouro saiu apenas com homens, já que, segundo Feitosa (no jornal O Povo, 13 de maio de 1995), “as mulheres brincavam nos blocos delas, nos blocos das moças”. Dessa forma, os homens, não obstante o preconceito, travestiam-se para representar os personagens femininos. Ele mesmo, além de macumbeiro (quem inventa e canta as músicas), foi também rainha do Az de Ouro. Atualmente, homens e mulheres participam dos desfiles.
Foto: divulgação. Espetáculo Rei Leal Na roda de prosa estão presentes o ator Beto, que há três anos faz o espetáculo Auto do Rei Leal, uma adaptação de Shakespeare que utiliza a estética do maracatu, e o músico Brenner, cuja banda Vigna Vulgaris estabelece a fusão de rock com a célula rítmica do Az de Ouro. Cada um assimila a mensagem do folguedo à sua maneira, transplantando-o para outras vertentes artísticas. É lá no bairro Jardim América, numa rua estreita e escura, que a tradição popular floresce. O ritmo do maracatu cearense era semelhante ao coco, rápido, mas a partir de 1950 ganhou lentidão e dolência. Caixas, bumbos, chocalhos e o triângulo de ferro fazendo o repinique: um som seco e alto, semelhante ao atrito de espadas. É essa cadência arrastada a mais marcante do Ceará, embora varie em alguns grupos, gerando controvérsias quanto à ruptura das tradições. Feitosa dizia que a batida mais lenta e mais requebrada era “para as baianas ficarem requebrando mais bonito no meio da rua”. Outra característica da solenidade cearense é a pintura do rosto “para a gente ficar bem mais escuro, mais parecido com as negras escravas, vindas da África”. As tintas do Az de Ouro ainda hoje são confeccionadas em processo artesanal – mistura de pó de lamparina, talco sem perfume e vaselina – porque, conforme explica Juca do Balaio, “as tintas industriais são muito secas”.
Foto: divulgação. banda Maracatu Vigna VulgarisPara o cineasta e escritor Rosemberg Caryri, a pintura do rosto é curiosa: “Na nossa cultura, nós tivemos um contingente de escravos negros pequeno em relação aos outros Estados. Isso faz com que os caboclos, os mestiços pobres da periferia, se pintem de negro, ‘sofrendo’ essa saudade da África mítica”. Em 1979, pelo decreto municipal da gestão de Lúcio Alcântara, o 13 de maio passou a ser oficialmente o Dia do Maracatu, aludindo à data de abolição do escravismo no Brasil. Sabe-se, todavia, que o Ceará já havia declarado a extinção desse sistema em 1884. Sete e meia, o batuque (bateria) é formado e os vizinhos sentam ao redor, nas calçadas, para assistir ao ensaio. O comerciante José Augusto trouxe a família para acompanhar: “É apaixonante.” A fila do ritmo começa com o triângulo, depois vêm a caixa e o surdo. São cerca de vinte instrumentistas. Logo, as dançarinas se posicionam. Ensaiam passos e coreografias. Algumas crianças tentam imitar. Atrás do microfone, Alê S. pede mais ânimo: “A gente não escutou a galera cantando o refrão. É muito importante o batuque cantar porque fica o conjunto completo”. No ensaio de domingo estão apenas as baianas, o batuque e o maculelê. Mas, quando figuram na avenida, o cortejo cresce e é dividido em alas. Na corte real, a rainha é a figura principal, expressando a predominância do primitivo domínio da mulher na formação familiar africana. O rei e a rainha são protegidos pelo pálio ou chapéu de sol, de cores vistosas (herança da África Setentrional). Completam a corte: príncipe, damas de honra, embaixadores, vassalos, damas do paço e baianas. Lampiões (combinação mista de herança da liturgia católica, das procissões, culto ao fogo e estilização do archote) iluminam o caminho, envolvendo a dança. A ala das negras inicia com a calunga, uma pequena boneca vestida de baiana: símbolo da sobrevivência totêmica das tribos e nações africanas escravizadas no Brasil. Silvio Gurgel assinala que é “como se fosse a filha de todo o maracatu”. No livro Folguedos Natalinos - Maracatu, o folclorista alagoano Theotônio Vilela Brandão (1907-1981) afirma que a calunga também fora denominada Santa Bárbara. Nas reinages e impérios, era costume levar na mão ou em charola a imagem do santo padroeiro para esconder o nome de Xangô, orixá dos raios, o qual denomina os cultos negros do Nordeste. Por isso, o pesquisador alagoano, em seu livro, incluiu o maracatu nos autos de Natal.
Coroação de uma Rainha Negra. Xilogravura: João Pedro do Juazeiro do Norte O ápice do cortejo acontece quando o rei e a rainha são coroados: uma possível rememoração do coroamento da rainha Ginga, soberana negra de Angola que combateu os colonizadores portugueses. As negras saem em fileiras, solicitando individualmente a “bênção real”. Depois voltam e continuam dançando. Durante a coreografia, a baiana Malu abre os braços em sinal de agradecimento. Ela diz que é uma “reverência à Oxalá”. Muito satisfeita, conta que o ensaio também lhe serve de “terapia contra o estresse da rotina”. Outra brincante da ala das negras, a pedagoga e pesquisadora Denise Azevedo, diz que conheceu o maracatu através dos seus alunos. Mesmo assim, afirma ter sido prejudicada pela direção da escola em que lecionava, pois esta não via o maracatu com bons Outra presença marcante no cortejo é a ala dos índios. O Ceará teve muita mestiçagem entre as culturas tapuia e ibérica: a chamada “civilização do couro”. “Houve no período colonial o encontro do negro com o índio. O negro que fugia para os quilombos muitas vezes encontrava os índios no sertão, lá no fundo, e passava a conviver”, explica Rosemberg Caryri, que executa diversos trabalhos de pesquisa e resgate da cultura popular nordestina: filmes, textos e gravações de CDs, como o Maracatus & Batuques (coleção Memória do Povo Cearense, volume V). Seu filho, Petrus Caryri, segue o exemplo. É dele o documentário Maracatu Fortaleza, de 2003. O filme traz depoimentos das principais autoridades “maracatuzeiras”, alternados com imagens de cortejos. Há pouco, no intervalo, alguém havia reclamado que o ritmo estava acelerado. Um fusca amarelo interrompe provisoriamente o ensaio. O batuque e as baianas abrem espaço para o carro atravessar, mas logo retornam. Pingo de Fortaleza acompanha o batuque com seu violão. Do palco-calçada, sugere que respondam ao refrão olhando para o céu, para incrementar a dramatização. Um grupo de capoeira comparece atrás do batuque. Cada componente porta dois pedaços de pau. Não, a intenção não é brigar, e sim dançar o maculelê. A Associação Palmares desfila com o Az de Ouro há quatro anos. “O maculelê também é uma dança afro-brasileira, e foi trazida para dentro da capoeira através do mestre Bimba”, afirma Ernesto, o mestre Índio. Inovação importante. “A gente vê que o ritmo daquele balançado tem tudo a ver com o maracatu”. Após alguns acertos e muitas loas, o ensaio termina, por volta das 9 horas da noite. Hora de guardar os instrumentos. Marcos Gomes pede voluntários para a fabricação de roupas, e avisa que precisa de fotos para a carteirinha das crianças. Ele preside o Az de Ouro desde 1993. Marcos pensa no maracatu para além do Carnaval: “Hoje, a idéia é transformar o maracatu em entidades socioculturais para trabalhar com a comunidade em todas as áreas: música, pintura e demais artes”.
Macumbeiro do Az de Ouro, 1967. Doação de Afrânio.Ano passado, o Az de Ouro desfilou na avenida com 280 pessoas. Em 2005, a participação aumentou em cerca de 10 por cento. “Os brincantes comparecem mais em época de Carnaval. Fora isso, a gente tem a necessidade de buscar as pessoas durante o ano inteiro.” Com a loa A Paz de Oxalá, a agremiação conquistou o terceiro lugar entre os oito maracatus que concorreram ao prêmio. Em Fortaleza, as agremiações carnavalescas são divididas em blocos, cordões, escolas de samba e maracatus. Nestes, os juízes observam seis quesitos: porta-estandarte, fantasia, balaieiro, rainha e batuque. Em sua história, o Az acumula dezoito títulos de Carnaval. Segundo Juca do Balaio, já tentaram excluir o maracatu das festividades de Momo, alegando ser “uma coisa muito lenta, que deveria estar apenas no dia do folclore”. Felizmente não vingou, continuando o maracatu a ostentar sua beleza na avenida. Os turistas e as pessoas da cidade prestigiam os desfiles sem economizar aplausos, fotos e sorrisos. “Quando eu comecei, o maracatu era bem pobrezinho, aí a gente foi melhorando a estrutura e hoje tem mais luxo, chama mais a atenção do público”, conta José Ferreira de Arruda, que há 46 anos sai como rainha do Az de Ouro. Há promessas de maior investimento para o Carnaval de 2006. No orçamento de 2003, a Fundação de Cultura, Esporte e Turismo de Fortaleza (a Funcet) captou 50.000 reais para suas atividades, inclusive o Carnaval. Quantia singela, se comparada aos 4 milhões investidos pela prefeitura de Recife em 2005. Erivaldo Casemiro, diretor da Funcet, afirma que há um projeto para fazer o Carnaval nas seis regionais da Grande Fortaleza, com bailes infantis e adultos. O orçamento previsto para 2006 é de 900.000 reais: “Estamos fazendo um plano para pré-Carnaval, Carnaval e pós. Iremos fazer oficinas de dança, música, figurinos e preparação de adereços”. Esse projeto tem a parceria da Funcet com a Federação das Agremiações do Ceará. Erivaldo afirma também que será feito o “resgate do Museu do Maracatu, com uma infra-estrutura necessária”. (...) Ô Virgem do Rosário, é chegada a hora, levanta a bandeira, vamos embora. Adeus, Cambimba, adeus, adeus, Cambimba, adeus... Raimundo Feitosa deixou herança singular na cultura cearense: pensou em algo diferente para desfilar na sua terra e conseguiu. “Hoje está todo mundo querendo criar um maracatu, e em toda parte que você anda só se fala em maracatu. Muita gente consegue êxito através do maracatu”, orgulha-se Juca do Balaio.










João Mauro é jornalista.










Do site da revista Caros amigos especialmente para o mensageiro da realidade.