sábado, 25 de outubro de 2008

CONTO DESTAQUE VENCEDOR DO XI PRÊMIO DE LITERATURA IDEAL CLUBE 2008

Na foto acima, o escritor laureado ao lado do Secretário de Cultura do Estado do Ceará, professor Auto Filho, que estava representando o governador Cid Gomes no evento.


CITIES IN THE SKY
Nelson Silva

Por essa época, todos os conflitos militares entre nações haviam cessado completamente nos quatro cantos da Terra. Embora atentados terroristas continuassem a sacudir grandes cidades da Europa e dos Estados Unidos sem retaliação aparente, guerras travadas por estados devidamente constituídos era coisa que não se ouvia falar haviam duas dúzias de anos.
Sob este prisma, como se poderia supor, o mundo definitivamente achava-se desfrutando de um período sem precedentes em sua história. Uma era em que, finalmente, o insólito astro azul não se encontrava empapado em sangue.
Tal convicção não soaria absurda de todo, uma vez que os orçamentos militares das superpotências haviam sido suprimidos drasticamente. Gastos com armamentos simplesmente desapareceram da mesa de negociações de governantes declaradamente belicistas.
Inimigos ancestrais - políticos e religiosos - selavam a paz e assinavam acordos de cooperação mútua onde antes só havia ódio e intolerância milenares.
Restavam combates étnicos isolados e homens-bomba que efetivamente explodiam aqui e ali, mas já nem mesmo eles sabiam bem porque estavam indo pelos ares.
A estranha ausência de hostilidades acabou convencendo até aos analistas mais céticos, defensores da teoria do ovo da serpente, aquele que eclode em ‘inocentes’ períodos de paz, como sucedera na Paz Armada antes do primeiro conflito e no entreguerras de 18-39.
Circunstâncias históricas à parte, a nova era mostrava-se promissora, uma vez que as fabulosas quantias que nutriam a máquina da guerra poderiam enfim ser empregadas em causas bem mais nobres, negligenciadas que foram pelos incontáveis mensageiros da morte que conduziram a civilização humana em sua tenebrosa trajetória através dos tempos.
O axiological dream world de Morus, a sociedade equilibrada e perfeita aparentemente tornara-se palpável para a maioria da população terrestre.
Foi então que passou-se a exigir do G-7 investimentos maciços em produção de alimentos, construção de moradias e escolas, pesquisa e fabricação de remédios empregando os bilhões de dólares que antes financiavam o aparelho bélico e irrigavam as veias dos vampiros das trevas que insistiam em sujar de sangue as páginas da história.
Falava-se mesmo em erradicação da fome, da miséria e de muitas doenças, do controle eficaz de todas as epidemias e da igualdade social entre os povos como algo perfeitamente possível de se realizar e em um intervalo de tempo relativamente curto.
Curioso pois, era observar a misteriosa apatia dos líderes que conduziam os países mais abastados, em nítido contraste com o entusiasmo global. Também requeria um traço de suspeição se fossem levadas em conta suas constantes evasivas quando interpelados sobre a aplicação dos formidáveis recursos em um plano de paz mundial tão ansiosamente aspirado.
O mundo não tardaria a descobrir, contudo, o que estava por trás das enigmáticas fisionomias de reis, presidentes, ditadores, primeiros-ministros, cardeais, senhores do capitalismo e chefes de religiões.
Reunidos em uma assembléia na ONU e sob protestos veementes dos representantes das nações mais pobres, eles surpreenderam a humanidade ao revelar um segredo de estado que estava sendo gestado há anos: um gigantesco projeto que iria consumir bem mais do que apenas o orçamento de suas forças armadas, dizimando completamente toda aquela fábula de sociedade perfeita.
Uma espetacular estação espacial com dimensões estapafúrdias de centenas de quilômetros em fase final de construção há tempos pairava sobre o planeta, naquela que seria a maior aventura tecnológica da espécie.
A novidade causou alvoroço e incredulidade nos outrora entusiasmados articuladores do chamado “Really Peace”, que era como o movimento em prol da nova era ficou conhecido.
Todos os grandes conglomerados industriais concentraram seus esforços para suprir as necessidades do voraz monstro espacial, suspenso na estratosfera, a doze mil quilômetros de altitude.
Visível a olho nu, a estrela metálica, com seu arrogante brilho prateado, remetia a um cometa portador de mau agouro, conforme acreditavam os anciãos das tribos primitivas desde o princípio da civilização. E, como se sabe, corpos celestes travestidos de deuses sempre exigiam rituais de sacrifício humano.
Logo, tudo o que o mundo produziria a partir dali embarcaria nos foguetes que partiam, céleres, para a estranha estrutura cósmica. O projeto inicial há muito fora expandido e os limites da estação pareciam convergir aos confins do universo.
Paralelamente às rotineiras decolagens das aeronaves, fatos intrigantes se desenrolavam na superfície.
Os estados há muito haviam abdicado de seus intrínsecos papeis fundamentais. O poder constituído isolara-se em torno de si e uma feroz instituição policial foi implantada, protegendo os governos e punindo com a morte toda e qualquer insurreição popular.
Uma grande parcela de trabalhadores fora aglutinada em áreas fechadas ou em campos de trabalhos forçados – que em muito lembravam a política do Gulag soviético – com o fim de produzir alimentos e um sem-número dos mais variados artigos, que eram rapidamente levados à NASA e às bases do Casaquistão, de onde embarcavam em ônibus espaciais em direção ao arranha-céu estelar, a essa altura já habitado por centenas de pessoas.
Um enorme elevador espacial – um cabo feito de fibra de nanotubos de carbono com uma força de tensão essencialmente alta – estendia-se por mais de vinte e cinco mil quilômetros espaço adentro, fixado em satélites geoestacionários, permitia que carregamentos, passageiros, contêineres e cargueiros de provisões contendo sementes de plantas, árvores e gêneros alimentícios desenvolvidos sob medida pela engenharia genética fossem içados para fora da gravidade terrestre com energia fornecida do solo. O resto da viagem era realizado por um foguete nuclear de baixa propulsão até o desembarque final no inacreditável aparato sideral.
Com a informação sob controle não era possível saber o que raios estava acontecendo. Comentava-se que os cientistas haviam descoberto uma nova forma de sobrevivência no espaço e, para viabilizar as pesquisas, estavam convidando os poderosos e a elite mundial para vivenciar a extravagante experiência, desde que desembolsassem, obviamente, uma quantia de muitos milhões de dólares.
À medida que reis, rainhas, presidentes e magnatas citados na Forbes começaram a ascender aos céus em vôos espaciais diários, a mentira oficial começou a ruir como um castelo de cartas.
Apesar da tenaz repressão aos órgãos de comunicação, sobretudo na rede mundial de computadores, alguns heróis mártires – como aqueles que se opuseram ao Führer na aurora do III Reich – conseguiram denunciar a farsa e suas imagens clandestinas não deixavam dúvidas de que havia uma fuga em andamento, embora muitos deles tivessem que pagar com a própria vida a descoberta sem precedentes nos anais de nossa epopéia.
De que fugiam afinal, os dirigentes mundiais? Era a retumbante pergunta que o mundo fazia.
Os semblantes aparvalhados dos desertores, metidos em ridículas roupas de cosmonautas lembravam condenados subindo ao patíbulo, revelando sua notória apreensão, como se não tivessem certeza do seu destino, os olhos esbugalhados.
Quando o Papa e seu séqüito tomaram assento em um desses veículos espaciais, ficara evidente que um perigo iminente rondava a Terra.
As miseráveis criaturas repudiadas estabeleceram, cá embaixo, um sistema em que prevaleciam saques, linchamentos, suicídios e um amplo leque de atrocidades. Não foram capazes de se organizar como sociedade tendo em vista o risco de um fim tão próximo.
Há muito haviam sido julgados por seus líderes. Restava agora saber de que forma de morte morreriam. E se existia alguma chance de sobrevivência.
Por enquanto, estavam absorvendo o choque da forma mais humana possível: a da guerra contra o seu semelhante.
No alto, a estrela artificial cintilava, patética e reluzente.