sábado, 4 de julho de 2009

Terras do Nunca


Pobre Michael Jackson. O homem morre como todos morremos. Radicalmente só. Com o coração a despedir-se prosaicamente do corpo. O mundo, em choro e transe, não acredita. Um mito não morre assim. Porque assim morremos nós, anônimos e mortais, mergulhados na nossa própria miséria. Os mitos só morrem por acidente ou conspiração invejosa de terceiros, que não aguentam o brilho incandescente da estrela.

John Kennedy não foi abatido pelo fracassado Lee Oswald numa manhã funesta de Dallas. Kennedy foi assassinado pela CIA, pelos cubanos, pelos soviéticos, pela máfia, eventualmente pelos extraterrestres.

O mesmo para a "Princesa do Povo", Diana Spencer. Uma vítima de um motorista alcoolizado e irresponsável numa noite de Paris? Não, mil vezes não. Diana foi vítima da Família Real inglesa, que a desprezava para lá do tolerável. Para dar mais requinte ao episódio, há quem garanta que Diana estava grávida. A autópsia não confirmou. Mas quem se prende a pormenores? Eu, por mim, aposto que eram gêmeos.

E, agora, Michael Jackson: ele não morreu por excessos vários e loucuras evidentes. Foi o médico; foi a empregada; foi o Rato Mickey quem acabou com o cantor.

Deixemos as teorias da conspiração para as mentes conspiratórias. No meio do sentimentalismo vulgar, e quase religioso, com que o planeta chora a morte de Jackson, a única declaração vagamente sensata foi dita pelo próprio presidente americano. E que nos disse Obama?

Para começar, que Jackson foi um músico de talento. Difícil discordar, embora o Jackson que eu aprecio morreu no dia em que nasceu o Jackson que grande parte do mundo aprecia, ou seja, em 1979 com "Off the Wall". O single prodigioso que os Jackson Five editaram dez anos antes, "I Want You Back", é incomparável com qualquer obra posterior. Opinião pessoal. Do Michael Jackson a solo, admiro apenas o bailarino. Brinco? Não brinco. Fred Astaire também não brincava quando dizia, na década de 80, que Jackson nascera demasiado tarde. Tivesse ele vivido nos anos 30 ou 40 e teria feito as delícias de Busby Berkeley ou Vincent Minelli. Quem aprecia musicais sabe do que falo.

Mas Obama não elogiou apenas o talento. Obama foi corajoso e lamentou a figura profundamente trágica de Michael Jackson. Nos próximos anos, saberemos mais sobre essa tragédia. Mas aposto que a origem dela está num homem que, para usar as palavras de um francês célebre, alimentou uma "náusea-de-si-próprio" ao longo da vida: uma náusea da sua própria negritude e, talvez mais importante, uma náusea da sua própria humanidade, por definição mutável e perecível. Não admira que, ano após ano, ele tenha tentado golpear essa humanidade, perseguindo um ideal estético que era, aos olhos do mundo, caricatural e infantil. E, aos olhos dele, eterno e pós-humano.

Disse anteriormente, citando Fred Astaire, que Michael Jackson não viveu nas décadas de 30 e 40 para inscrever o seu nome na tradição dos grandes musicais. Mas é possível recuar mais um pouco e lamentar que Jackson não tenha nascido e vivido em finais do século 19, inícios do 20. E que não tenha conhecido uma alma gêmea como J.M. Barrie, o escritor para quem a infância era, simultaneamente, o melhor e o pior dos mundos. O melhor, pelo encantamento permanente que lemos em "Peter Pan" ou no injustamente esquecido "The Little White Bird". Mas também o pior dos mundos, porque capaz de antecipar a corrupção futura: a maturidade, o envelhecimento, a perda da inocência.

Não sei se Jackson leu Barrie. Provavelmente. Mas sei que lhe roubou o nome para o seu rancho, "Neverland", essa "Terra do Nunca" onde os rapazes não crescem. Tivesse Michael Jackson lido "Peter Pan" com atenção e saberia que, mesmo na "Terra do Nunca", os rapazes não crescem mas também morrem.

POETA SINGULAR



Poeta brasileiro. Famoso pela originalidade temática e vocabular, na fase que antecedeu o modernismo. Eu (1912).

Augusto dos Anjos recorreu a uma infinidade de termos científicos, biológicos e médicos ao escrever seus versos de excelente fatura, nos quais expressa por princípio um pessimismo atroz.

Considerado o mais original dos poetas brasileiros entre Cruz e Sousa e os modernistas, Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos nasceu no Engenho Pau d'Arco PB em 20 de abril de 1884. Aprendeu com o pai, bacharel, as primeiras letras. Fez o curso secundário no Liceu Paraibano, já sendo dado como doentio e nervoso por testemunhos da época. Formado em direito em Recife (1906), casou-se logo depois. Contudo, não advogou; vivia de ensinar português, primeiro em seu estado e a seguir no Rio de Janeiro RJ, para onde se mudou em 1910. Lecionou também geografia na Escola Normal, depois Instituto de Educação, e no Ginásio Nacional, depois Colégio Pedro II, sem conseguir ser efetivado como professor.

Em fins de 1913 mudou-se para Leopoldina MG, onde assumiu a direção do grupo escolar e continuou a dar aulas particulares. Seu único livro, Eu, foi publicado em 1912. Surgido em momento de transição, pouco antes da virada modernista de 1922, é bem representativo do espírito sincrético que prevalecia na época, parnasianismo por alguns aspectos e simbolista por outros. Praticamente ignorado a princípio, quer pelo público, quer pela crítica, esse livro que canta a degenerescência da carne e os limites do humano só alcançou novas edições graças ao empenho de Órris Soares (1884-1964), amigo e biógrafo do autor.

Cético em relação às possibilidades do amor ("Não sou capaz de amar mulher alguma, / Nem há mulher talvez capaz de amar-me), Augusto dos Anjos fez da obsessão com o próprio "eu" o centro do seu pensamento. Não raro, o amor se converte em ódio, as coisas despertam nojo e tudo é egoísmo e angústia em seu livro patético ("Ai! Um urubu pousou na minha sorte").

A vida e suas facetas, para o poeta que aspira à morte e à anulação de sua pessoa, reduzem-se a combinações de elementos químicos, forças obscuras, fatalidades de leis físicas e biológicas, decomposições de moléculas. Tal materialismo, longe de aplacar sua angústia, sedimentou-lhe o amargo pessimismo ("Tome, doutor, essa tesoura e corte / Minha singularíssima pessoa"). Ao asco de volúpia e à inapetência para o prazer contrapõe-se porém um veemente desejo de conhecer outros mundos, outras plagas, onde a força dos instintos não cerceie os vôos da alma ("Quero, arrancado das prisões carnais, / Viver na luz dos astros imortais").

A métrica rígida, a cadência musical, as aliterações e rimas preciosas dos versos fundiram-se ao esdrúxulo vocabulário extraído da área científica para fazer do Eu -- desde 1919 constantemente reeditado como Eu e outras poesias -- um livro que sobrevive, antes de tudo, pelo rigor da forma.

Com o tempo, Augusto dos Anjos tornou-se um dos poetas mais lidos do país, sobrevivendo às mutações da cultura e a seus diversos modismos como um fenômeno incomum de aceitação popular. Vitimado pela pneumonia aos trinta anos de idade, morreu em Leopoldina em 12 de novembro de 1914.