terça-feira, 30 de março de 2010

O Legado de Armando


A frase é do poeta americano Ezra Pound: literatura é a notícia que permanece notícia. E explica um pouco por que a morte de Armando Nogueira encerra uma era na crônica esportiva nacional. Armando sempre enxergou além. Como Nelson Rodrigues e, antes dele, Mário Filho… Armando nunca viu o esporte como algo frio e objetivo. Sempre observou o drama – a dimensão profunda atrás de cada disputa.


Armando escreveu que se Pelé não tivesse nascido homem, teria nascido bola. Armando, se escrevesse sobre si mesmo, talvez fizesse analogia afim. Algo como… Armando, se não tivesse nascido homem em Xapuri há 83 anos, teria nascido pena. Pena, sim, não caneta. Pois Armando sempre pareceu pertencer a outra era. Foi um romântico, um otimista, capaz de enxergar como esteta a pelada da esquina.


No aniversário de 25 anos da morte de Nelson Rodrigues, Armando escreveu um texto para lembrar do amigo. Um parágrafo desse texto resume sua visão – e seu legado esportivo:


“A meu juízo, o jornalismo esportivo se divide em três categorias profissionais: o repórter, que lida com informação; o comentarista, que se ocupa da análise dos fatos; e, por fim, o cronista, que não tem maiores compromissos com a realidade”


Essa categoria Nelson elevou a enésima potência – e Armando seguiu seus passos. E por conta deles, podemos dizer que não fazemos feio diante da frase de Pound. Pelo contrario, fazemos bonito. Podemos ler uma crônica de Nelson sobre a Seleção de 1958, hoje, e sentir que estamos lendo algo novíssimo. Ou ler uma crônica de Armando sobre a Seleção de 1970… e ter aquela sensação de novidade – ou de peculiaridade – de conhecer a visão única e subjetiva de uma história. Jornalismo literário – num passo além de Gay Talese.


O drama esportivo de Armando Nogueira sempre foi mais lírico do que épico. Por vezes era hiperbólico, como Nelson. Mas, mais frequentemente, era poético e minimalista. Vez por outra, claro, havia a epopéia, a glória, a conquista. Mas, no geral, Armando observava a bola como um objeto especial, o passarinho perdido nos dribles de Garrincha, a sutileza oculta em cada drible. Era capaz de vislumbrar poesia num passe de três dedos, de encontrar arte num bloqueio de voleibol.


O melhor Armando era irônico e doce – aquele que dizia que copiar o bom era melhor do que inventar o ruim. Com seu desaparecimento, a crônica-esportiva-como-ela-era perde uma espécie de último mosqueteiro. Reforço para o time literário-esportivo lá de cima – onde craques como Albert Camus, Nelson Rodrigues, Mário Filho, João Saldanha, Paulo Mendes Campos dividem uma mesa-redonda que deixa as nossas, aqui embaixo, num amplo e irrecorrível chinelo.

Gustavo Poli - Rede Globo