segunda-feira, 6 de julho de 2009

Wendy e Peter Pan em Neverland


Wendy e Peter Pan em Neverland
Dom, 05/07/09por Paulo Nogueira |categoria Geral| tags Michael Jackson




Não vou dizer, como Gay Talese, que a mídia matou Michael Jackson. O suicídio, ou a vida destrutiva que conduz à morte, é uma escolha que cada um de nós faz. Ninguém nos obriga a uma agenda mortal. Nas mesmas circunstâncias de super estrelato de Michael Jackson, Paul McCartney se esforçou com sucesso para levar uma vida real, igual à de todos nós - exceto pelo dinheiro e pelos holofotes. Roupas normais, comportamento normal, família normal: Paul não recorreu à excentricidade como arma publicitária, como é comum nas celebridades, e entre elas Michael Jackson levou ao ápice do ápice a bizarrice como método para não deixar as manchetes. Circular obsessivamente com um chimpanzé capaz de dançar o Moonwalk foi apenas uma das coisas esquisitas que Michael Jackson sabia que virariam notícia mesmo quando nada de novo ele tivesse a apresentar na música.

Reflito aqui comigo mesmo que a busca pela excentricidade foi tamanha que Michael Jackson, em algum momento, se tornou mesmo excêntrico. Há um verso clássico de Fernando Pessoa segundo o qual “o poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. Num certo ponto de sua trajetória, que seus admiradores saberão precisar melhor que eu, que arrisco ser o lançamento de Thriller, Michael Jackson talvez tenha começado a acreditar que era mesmo esquisito como projetava ser na busca cruel de ser notícia sempre. Essa busca é a maldição suprema, o anátema enlouquecedor do artista incomodado com os períodos de sombra. O poeta de Fernando Pessoa fingia a dor; celebridades obcecadas com a presença na mídia fingem, com freqüência, excentricidade porque excentricidade é notícia.

A mídia não matou Michael Jackson, como sustentam Talese e tantas outras pessoas. Mas a mídia cometeu o erro de acreditar na bizarrice que Michael, pelo menos no início da etapa de sua vida desconectada da realidade, fingia com o propósito de ter sempre microfones e câmaras à espreita em busca dele mesmo ou sobretudo quando não havia motivos musicais para isso. O artista foi ficando para trás na mídia e o excêntrico foi ganhando cada vez mais espaço. Foi preciso que Michael Jackson morresse aos 50 anos, sob uma comoção mundial raras vezes vista, se é que alguma, para que fosse feita uma avaliação mais acurada do tamanho de Michael Jackson como artista: o inovador, o gênio versátil que dançava como James Brown, cantava como Marvin Gaye e compunha como Stevie Wonder.

Ainda assim, quando saiu da avaliação musical para o perfil pessoal, a cobertura dada a Michael Jackson sofreu a contaminação de anos e anos da crença na bizarrice. Quando você vai escrever o obituário de alguém, faz uma pesquisa com o que foi publicado sobre o morto, e de Michael Jackson emergiu uma dose fabulosa de esquisitices que leitores do mundo todo foram obrigados a engolir em novas e antigas mídias na procura sôfrega por informações do ídolo tombado.

Eram os dados velhos. Quanto aos novos, vieram na forma de desencontros formidáveis. Nos ótimos jornais britânicos, pelos quais acompanhei em Londres o noticiário, você lia numa página que Michael Jackson estava semimorto fazia tempo e em outra que seus ensaios no Staples Center tinham uma magia ainda maior do que tudo o que ele fizera antes. Um artigo dizia que ele estava apavorado com o retorno depois de tantos anos ausente a ponto de buscar involuntariamente se livrar de tudo pela morte, e outro afirmava que ele contava os minutos pela volta aos palcos. Alguém dizia que ele perdera a voz e os passos de dançarino exímio, e outra pessoa dizia que ele estava melhor que nunca. Tudo numa só edição, no espaço de uma ou duas páginas de distância.

Não me causou espanto, assim, que o melhor artigo sobre Michael Jackson tenha sido feito não por um de nós, jornalistas, mas por um escritor, Paul Theroux. Theroux publicou, no Daily Telegraph, suas reminiscências de uma visita a Neverland e um telefonema trocado com Michael Jackson. Theroux estava escrevendo um artigo sobre Liz Taylor, grande amiga de Michael, e foi a Neverland falar com ela. Não vi nenhuma outra descrição de Neverland que se igualasse à de Theroux, nem tampouco um retrato de Jackson como ser humano tão profundo ainda que em poucas linhas. Muitas coisas em Neverland têm nomes caros ao dono, de ruas a brinquedos, mas nada foi batizado de Joseph, como se chama o pai. De Katherine, a mãe, sim.

Wendy e Peter Pan, assim é descrita a relação entre Liz Taylor e Michael Jackson. Eles se conheceram quando a atriz pediu ingressos - 14 - para uma apresentação da turnê de Thriller. Os lugares eram tão distantes que parecia que você estava vendo pela tevê, reclamou Liz Taylor, e Michael Jackson ficou embaraçado. Pediu desculpas, e assim começou uma amizade que se tornaria provavelmente a maior de todas nos 50 anos de vida de Michael. “Compartilhamos a grande tragédia do estrelato na infância”, disse Michael. Liz Taylor, inspirado em quem ele escreveu Childhood, também estourou cedo.

Depois da visita a Neverland, um dia toca o telefone de Theroux às 4 da manhã e a voz frágil lhe diz: “Aqui é Michael Jackson.” Ele diz a Theroux que ninguém sabe o que é fazer um show, com a adrenalina no máximo, e no dia seguinte estar acordado às duas da tarde. Na conversa, fala dos escritores de que gosta: Somerset Maugham de cara, e depois cita Hemingway, Whitman, Twain. Desabafa sobre o número de vampiros que cercam alguém como ele, em busca do dinheiro. Michael Jackson fica interessado e pede explicações quando Theroux faz uma citação de um evangelho apócrifo sobre uma certa infância perdida. Duas vezes ele interrompe o silêncio e diz “uau”, a primeira na citação, a segunda no final da dissertação religiosa de vinte minutos feita por Theroux.

Sobre Wendy e Peter Pan, o depoimento melhor do amor eterno entre ambos estava, uma vez mais vez, não na mídia britânica - mas no twitter. “Estava arrumando minha mala rumo a Londres, para a abertura de seu show, quando ouvi a notícia”, escreveu ela em seu twitter. “Ainda não acredito. Não quero acreditar.” Eram exatamente 10 horas da noite do dia 26 de junho. Seis minutos depois, ela escreveu: “Não posso imaginar a vida sem ele. Mas com a ajuda de Deus talvez consiga.” Às 10h08, mais uma manifestação de Liz Taylor. “Fico olhando para a foto que ele me deu dele mesmo, que diz ‘para meu amor verdadeiro Elizabeth, te amo para sempre’. E eu vou amar a ELE para sempre.”

E desde ali o twitter de Liz Taylor está em silêncio, como Michael Jackson diante das palavras de Paul Theroux numa madrugada avançada sobre uma infância perdida e suas conseqüências.

Paulo Nogueira é jornalista e está vivendo em Londres. Foi editor assistente da Veja, editor da Veja São Paulo, diretor de redação da Exame, diretor superintendente da Editora Abril e diretor editorial da Editora Globo direto para o Mensageiro da Realidade.

Ornitorrinco

Meu senhor, minha senhora, desculpa tocar no assunto, mas você vai morrer. Não se ofenda, vamos todos: eu, a Dona Eulália do 51, a rainha Silvia da Suécia e a voz da chamada a cobrar. Talvez não hoje, nem em dez anos, mas uma hora dessas bateremos as botas e batidas elas ficarão, até virarem terra, depois capim, minhoca, cachorro e daqui milhões de anos, quando o sol explodir, voltaremos à poeira cósmica de que viemos.

Eu sei que você sabe disso - sempre soube -, mas aposto que não estava pensando no assunto quando começou a ler essa crônica. Nós raramente pensamos na morte. Sabemos que ela existe em algum lugar distante, assim como, digamos, os ornitorrincos - e assim como vivemos muito bem, obrigado, sem nunca topar um ornitorrinco, nutrimos lá no fundo a esperança de, quem sabe, jamais darmos de cara com Ela.

Talvez seja melhor assim. Seria impossível viver de olho na ampulheta. O dia-a-dia transformaria-se num filme do Bergman, ficaríamos cambaleando por corredores escuros e resmungando sobre o tempo e o nada, ou quem sabe sairíamos loucos pelas ruas, pelados, saqueando supermercados, bebendo Cynar no gargalo e cantando A Jardineira; imagina só botar as crianças pra dormir ou calcular o imposto de renda no meio da confusão?

Não é por desleixo que ignoramos a morte: empenhamos muita energia nessa direção. Está vendo esses homens embriagando-se no bar? Aquela garota de sobrancelhas franzidas analisando a tabela nutricional do iogurte? O casal brigando dentro do carro? Tudo para não olharmos de frente a grande defenestradora. Tergiversamos o quanto podemos, mas não postergamos: uma hora ela chega, nós vamos.

Não, caro leitor, essa não é uma crônica edificante. Não recomendarei que viva todo dia como se fosse o último, pule de pára-quedas, faça as pazes com seu irmão. Talvez essas ações te façam bem, mas isso nada tem a ver com a morte. Ter uma vida plena só é bom enquanto estamos vivos; defuntos, Don Juan e a dondoca são iguaizinhos.

Veja só os gregos, tão sabidos: todos mortos. Shakespeare, morto! Einstein, morto! A Marilyn Monroe, Noel Rosa e o Cacique Tibiriçá, mortos, mortos, mortos! “Ah, mas eles sobreviveram em nossa memória!”. Grande coisa. Lembranças não comem picanha, não fazem sexo e, mesmo vivendo na cabeça de milhões de pessoas, nunca sentiram o prazer de um cafuné.

Paciência. O negócio é tocar pra frente. Vamos lá, hoje é domingo. Tem jogo? Churrasco? É dia de cortar as unhas dos pés? Melhor não pensar na morte e torcer para que ela também não pense na gente. Quando ela vier, que venha: antes disso, que fique lá pros lados da Austrália, junto aos ornitorrincos.

Desculpa tocar no assunto.


por Antonio Prata,Direto de O Estado de S. Paulo para o Mensageiro da Realidade.