domingo, 5 de outubro de 2008

200 ANOS DA CHEGADA DA FAMÍLIA REAL AO BRASIL


Coube a d.João VI uma das decisões mais cruciais da história de Portugal e Brasil: a transferência da Corte para o Rio de Janeiro, onde aportou há exatos 200 anos.
A esta decisão, e às que dela derivaram, como a abertura comercial, credita-se o início do tortuoso processo que culminaria na independência do País. Há quem enxergue na chegada da família real o marco da maioridade brasileira.
E, no entanto, o príncipe regente passou à história como um homem indeciso. Covarde, pusilânime. Mais: comilão, abúlico, alienado. Mais: pai traído, marido enganado.
Sabe-se que d.João adiava ao máximo suas decisões, e freqüentemente as tomava a contragosto. Que era atormentado por acessos de depressão, quando então buscava refúgio na caça e na música. Sabe-se do difícil relacionamento com a mulher, Carlota Joaquina, com quem se casou aos 18 anos - e ela, 10.
Mas a caricatura fácil do homem covarde, incapaz, é em grande parte devida a uma historiografia liberal ou republicana e carece de comprovação documental.
Nascido em 1767, d.João entrou na linha de sucessão do trono português por conta da morte de seu irmão José. E porque sua mãe, rainha Maria, enlouquecia, D.João assumiu jovem a regência, em fins do século 18. Logo nos primeiros anos do século seguinte, teve de lidar com o fato de que Portugal se achava encurralado, a meio caminho do conflito entre Inglaterra e França.
Eram tempos dramáticos, e a biografia de D.João se confunde com eles, para além das simplificações. O historiador Oliveira Martins perfila o regente da seguinte forma: "desconfiava sempre, e de tudo, de todos; e se era indeciso, por ser fraco e inepto, era-o também por esperteza e dissimulação".

pessoas a bordo: 950 tripulantes e 104 passageiros. E nenhum banheiro. Também não havia geladeira a bordo, é claro. A comida era estocada salgada e seca. A água era racionada. Dormia-se apertado, no convés, em redes.
Por força de uma tempestade, a nau capitânea fez em janeiro uma escala em Salvador, onde, em 28 de janeiro, d.João decretou o primeiro marco de seu reinado no Brasil: a abertura dos portos, que significou o fim do monopólio colonial. Embora contingencial - e imposta pela Inglaterra -, a abertura dos portos representou o início da inserção brasileira no comércio mundial e se complementaria, cerca de dois meses depois, com outra medida fundamental da era joanina: o decreto da liberdade de comércio e da indústria manufatureira.
Após a difícil travessia, a nau capitânea chegou finalmente ao Rio em 7 de março de 1808. Seus ocupantes desembarcaram no dia seguinte, às 16h. A tarde era amena.

As elites locais tentaram maquiá-lo para a chegada da Corte, mas em vão: o Rio de Janeiro de 1808 não era mais que uma vila, e tacanha. As ruas (46 ao todo) eram em geral de terra, mal traçadas, esburacadas e fétidas. As edificações, poucas, soturnas, pobres. Viajantes destes tempos falam da falta de educação e higiene dos colonos, e da cidade. Conforme John Luccock, os colonos não escovavam os dentes, não tomavam banho e mal trocavam de roupa. Jogar as fezes pelas janelas era habitual, e as epidemias também.
Elevada à condição de capital do Reino, a cidade passou então por um intenso processo de expansão, com o aterro de mangues e brejos, abertura de novas ruas e construções. Para a antropóloga Lília Moritz Schwarcz, da USP, "o Rio de Janeiro parecia partido em dois: de um lado, a morada dos colonos; de outro, a nova residência da Corte. De um lado, a vila que ganharia ares de uma “Nova Lisboa”; de outro, a cidade que mantinha a aparência de uma pequena África, tal a quantidade de negros escravos e libertos que perambulavam pelas ruas"

Amontoados na Baía de Guanabara, os colonos cariocas acompanharam o desembarque da família real portuguesa no dia 8 de março de 1808. É de se imaginar que a reação feminina não tenha sido muito diferente do que seria hoje: a mulherada reparando nos modelitos das européias. Para quem esperava um grande desfile, teve que se contentar com roupas estropiadas pela longa viagem.
As damas desceram com vestidos simples, à moda francesa, com os cabelos em coque e cachos modelando o rosto. Exceto as mulheres da nau Alfonso de Albuquerque, da princesa Carlota Joaquina. Ela, as filhas e outras damas chegaram ao Rio com as cabeças raspadas, protegidas por turbantes. Resultado de um surto de piolho que assolou os passageiros. O look “cabelo curto-turbante” logo virou moda entre as brasileiras, que achavam ser essa a última tendência européia.
Para as mulheres, a moda era vestido esvoaçante com enlace abaixo do seio. Pedras preciosas como o topázio imperial eram as preferidas para colares, pulseiras, anéis e enfeites de cabelo. Para os homens, casacas de insígnias e condecorações.
Do príncipe regente, d. João, pode-se dizer que não era uma pessoa atenta às últimas tendências da moda. Para um príncipe, ele se vestia mal e repetia a mesma roupa sem se preocupar com os rombos no tecido. “O príncipe costumava usar uma vasta casaca sebosa de galões velhos, puída nos cotovelos”, afirma o historiador Pedro Calmon.

A miséria tropical. Este foi o chocante cenário encontrado pelos artistas franceses que chegaram ao País em março de 1816 para criar a Academia Imperial de Belas Artes (Aiba) e lecionar nela. Há registro de uma carta de Taunay ao príncipe regente datada de 1815 oferecendo seus serviços ao rei. Para a professora do Departamento de Antropologia da USP, historiadora Lilia Schwarcz , "parece ter existido uma convergência de interesses. De um lado, artistas formados pela academia francesa inesperadamente desempregados. De outro, uma monarquia estacionada na América do Sul e carente de representação oficial". Para o pintor francês Jean-Baptiste Debret, formado na tradição neoclássica, retratar a realidade brasileira, em todos seus aspectos contrastantes e artificiosos - simbolizada pelo "caráter postiço das pompas imperiais no Brasil", como define o crítico de arte Rodrigo Naves - mostrou-se uma dificuldade. Em toda sua estada, produziu pouco mais de 30 quadros. Não só Debret experimentou o mesmo desafio e deslocamento cultural. Na mesma época que ele, Félix Émile Taunay, Johan Moritz Rugendas, Thomas Ender, entre outros, também buscaram documentar a realidade local. Mas foi apenas Debret quem "abdicou dos esquemas formais que trazia na bagagem para se arriscar em novos rumos", como avalia Naves. Buscou refúgio criativo nas aquarelas, espontâneas e livres de obrigações estéticas das obras por encomenda. Politizado, Debret debruçou-se com maior carinho no tema da escravidão. Está ali seu trabalo mais revelador. Para ele, "a escravidão significava mais que a simples representação de açoites ou trabalhos extenuantes, situações que ele também retratou. Mas que eram incapazes de apreender toda a dimensão insidiosa da escravidão de ganho, com suas aparências ambíguas", explica Naves.

Desde que se confirmaram os bons augúrios de que a porção da frota onde viajava o príncipe-regente havia desembarcado sã e salva na capital da Bahia, a cidade do Rio de Janeiro parece ter entrado num transe misto de curiosidade, expectativa e correria com os preparativos para a recepção da augusta família. Parte dela (com as princesas, irmãs da rainha demente) já havia chegado desde 17 de janeiro por força da tempestade que levara o príncipe direto a Salvador. Ao romper do dia 7 de março de 1808, o Rio de Janeiro era frenesi e confusão. Conta-se que toda atividade, pública e particular, fora suspensa, as lojas fechadas e as casas esvaziadas, já que todos os habitantes correram para a praia ou para os outeiros, e até mesmo aos telhados para se assistir ao esquisito espetáculo. A rigor, a cerimônia do desembarque pode ser entendida como uma síntese antecipada dos 13 anos seguintes, período em que a família real residiu na capital do Brasil. O cenário, os personagens e suas ações já ali se fizeram plenamente presentes.
O palco do espetáculo da Corte no Brasil constituía-se naquela cidade ímpar que era o Rio de Janeiro, capital de uma ex-colônia que acabava de se abrir para o mundo. Tinha ainda as feições rudes de porto colonial, com suas linhas maltraçadas, suas ruas estreitas e fétidas, suas habitações mal-arejadas e soturnas, sua população maciçamente negra e parda. Mas a natureza generosa fazia prender o fôlego a todos os viajantes e aventureiros que ali chegavam, e que não cansaram de lisonjear o entorno exuberante, a mata abundante, a baía cercada de montanhas ciclópicas que miravam para o mais azul dos céus, as praias das areias mais brancas bombardeadas pelo sol tropical. Com a chegada dos distintos adventícios, o colorido natural foi amplificado pelas infinitas bandeiras, flâmulas e pavilhões das naus, de guerra e mercantes, que não cessaram mais de chegar e que congestionavam a bela baía; colorido, também, que pendia das varandas dos sobrados, com as colchas de cetim e damasco, muitas vezes mandadas pendurar por decreto; o colorido aromatizado das flores que se mandavam jogar ao passar o séqüito real para que se alcatifassem as ruas malcheirosas da cidade pantanosa onde os dejetos domésticos corriam a céu aberto ou eram atirados às praias em ombro escravo; colorido, por fim, das velas de cera e das girândulas, luminárias e fogos de artifício que clareavam a noite. A presença real, no dizer do cronista, lisonjeava não apenas os olhos, mas também os ouvidos, com as inúmeras salvas de canhões das naus e fortalezas, os incessantes repiques de sinos e salvas de artilharia, que chamavam a população para os reais festejos. O Rio de Janeiro de d. João foi uma festa só, que começou com o desembarque e que acionava todos os sentidos.
Além dos protagonistas e da população que fazia o papel de platéia, os personagens se apresentaram todos ali, logo ao desembarque, que se deu por volta das 4 horas da tarde do dia 8 de março, uma tarde generosamente aprazível para essa época do ano costumeiramente escaldante. Por um ardil da história, desembarcava nos trapiches fluminenses uma típica sociedade de corte de antigo regime europeu, com seu rei absoluto, corte e Estado. E cada valete desse baralho sabia perfeitamente qual seu lugar e valimento. A luta para alcançar maiores e melhores lugares e benesses era cruenta; os residentes fluminenses, particularmente seus estratos mais abastados, ligados ao comércio internacional, ao tráfico de escravos e ao sistema de crédito, viram-se irresistivelmente atraídos pelo brilho da Corte e logo se meteram nessa guerra palaciana. Tinham aquilo de que o rei e seu Estado tanto precisavam naquela circunstância heróica, em que singraram o oceano para salvar o corpus místico do soberano: tinham l’argent, com o qual socorreram as diversas urgências do rei, que em reconhecimento paternal lhes retribuiu com cargos e distinções.
O desembarque da real comitiva é descrita pelos panegiristas como uma quase epifania, catártica, arrebatadora. Mas fato é que a primeira coisa que fizeram o rei e seu séqüito foi porem-se de joelhos, prostrados, diante de um altar ali improvisado, onde beijariam a cruz e receberiam as devidas bênçãos do cabido da catedral. Após todas as aspersões e turificações, saiu a procissão rumo à improvisada Sé, na ocasião a igreja dos pretos do Rosário, onde então funcionava provisoriamente o cabido. Nada mais eficaz do que uma procissão para colocar cada um no seu devido lugar. Numa sociedade de corte, quanto mais próximo do rei, mais alto na escala social – e mais facilmente objeto das reais mercês. Por isso, será muito revelador observar quem eram aqueles personagens importantes, que surgem logo nas cenas das primeiras ações do rei em terra firme; aqueles que, por exemplo, seguravam as varas do pálio de seda sob o qual se recolheram os membros da família real, para, por entre as fileiras de soldados dispostos ao longo da Rua Direita, tomarem o rumo da catedral, onde culminaria a cerimônia do desembarque com os te deum, orações e beija-mão real. Seguiram-se nove dias de luminárias.
Tem-se notícia de que os escolhidos para segurarem as varas do pálio de seda de ouro encarnada sob o qual ficariam as reais pessoas foram o presidente do Senado da Câmara, acompanhado de alguns “homens bons” da cidade, entre os quais Francisco Xavier Pires, Manuel Pinheiro Guimarães e Amaro Velho da Silva.
A imprensa régia publicou em Lisboa uma interessante “relação das festas” realizadas no Rio de Janeiro quando da chegada da família real, na qual se ajuntam algumas “particularidades igualmente curiosas e que dizem respeito ao mesmo objeto”, onde se dá conta das “ações” encetadas por alguns desses personagens centrais do teatro da Corte joanina no Brasil. Dentre essas “ações”, ganhará realce essa espécie de simbiose que se estabelecerá entre os dignitários maiores da terra, os grandes argentários da praça mercantil do Rio de Janeiro, e o rei, no cume da sociedade de corte migrada. A primeira “particularidade curiosa” mencionada naquela relação das festas de 1808 refere-se à doação que fez Elias Antônio Lopes, negociante de grosso trato estabelecido na praça do Rio de Janeiro, da quinta da Boa Vista em São Cristóvão, que passou a ser a residência oficial de d. João e seu retiro preferido. Conta-se que, quando nela entrou pela primeira vez, S. A. R. confidenciou ao negociante que o acompanhava: “Eis aqui uma varanda real, eu não tinha em Portugal cousa assim.” Não se sabe se de fato disse semelhante frase o príncipe-regente, nem se, tendo dito, se expressasse sinceramente. Mas consta que o rei recompensou o negociante com diversas mercês, nomeando-o de plano comendador da Ordem de Cristo e administrador da mesma quinta.
Era o conselheiro Elias Antônio Lopes um dos maiores argentários da praça mercantil do Rio de Janeiro. À época de seu falecimento, sua fortuna estava aplicada, sobretudo, em negócios mobiliários, que somavam mais de 34 contos de réis, dívidas ativas que giravam em torno de 40 contos de réis e, a maior parte, investimentos em atividades comerciais diversas que ultrapassavam os 100 contos de réis. Seu capital total, computados todos os bens móveis e viventes, trastes, roupas, chegava a quase 236 contos de réis, uma fábula para a época. Possuía ainda 110 escravos, avaliados em quase 9 contos de réis. O presente ao príncipe foi um investimento que certamente não abalou o orçamento do potentado.
A partir da doação da real quinta da Boa Vista a d. João, os laços de amizade entre ambos se estreitaram, assim como se fortaleceram as influências do comerciante. Falecido em 1815, acumulou Elias Antonio em sete anos de vida ao pé do trono, ou a seu lado direito, inúmeros cargos e patentes, cargos na administração pública e foros de fidalguia, capital simbólico maior numa sociedade de corte.
Tanto Elias Antonio Lopes como Francisco Xavier Pires, Manuel Pinheiro Guimarães e Amaro Velho da Silva figuram entre as maiores fortunas do Rio de Janeiro desde o começo dos anos 1790, todos eles nomes capitais do tráfico negreiro. Como Lopes, os outros três traficantes doaram grandes somas para as causas do rei. Os três primeiros constam na lista de subscrição (espécie de “livro de ouro”) aberta logo em 1808 por d. Rodrigo de Sousa Coutinho e Manuel Caetano Pinto para salvar as urgências do Estado. Em menos de 30 dias essa primeira lista amealhou mais de 26 contos de réis. Amaro Velho, junto com os traficantes da família Leão (herdeiros de Brás Carneiro Leão, morto em 1808, que era pai de Fernando Carneiro Leão, o todo-poderoso intendente da polícia da Corte), o mesmo Manuel Caetano Pinto e outros potentados doaram uma pequena fortuna aos cofres públicos em 1808, para se levantar uma fábrica de pólvora. Tais doações não eram exatamente atos patrióticos desinteressados. Cada um desses nomes amealhou muitas benesses reais, tais como cargos burocráticos (na diretoria do recém-fundado Banco do Brasil, ou na arrematação de impostos, por exemplo, ambos altamente rentáveis), patentes militares, foros de fidalguia (como os hábitos das diversas ordens militares e religiosas), lugares no conselho de Estado e uma infinidade de liberdades, isenções, privilégios e franquias para tocarem seus negócios sem maiores embaraços.
Eis como um aparentemente singelo acontecimento, por mais excepcional que seja, pode revelar muito das entranhas de uma sociedade, aquilo que lhe explica seu passado e projeta seu futuro. Ali, logo no ato único e memorável do desembarque de um príncipe regente europeu em solo tropical, começava a se desenhar o perfil da classe de homens que estabeleceram uma relação de trocas – muito mais que simbólicas – com o rei durante seus anos no Rio de Janeiro.
A cidade nunca mais seria a mesma, nem o país que ali começava a nascer. Quando do regresso do soberano a Portugal em 1821, serão os prepostos desses potentados que, cooptando o príncipe d. Pedro para sua causa, darão curso à independência. E serão esses mesmos potentados que tomarão em suas mãos o trabalho de construção do Estado e da nação ao longo do século 19, à sua imagem e semelhança e em seu benefício.
* Jurandir Malerba é professor da Unesp e autor, entre outros, de A Corte no Exílio (Companhia das Letras) e organizador de A Independência Brasileira (Editora da FGV)