sábado, 16 de agosto de 2008

O ESTRANHO MUNDO DE TAMIRES

O ESTRANHO MUNDO DE TAMIRES
Nelson Silva

Tamires cultivava uma relação maternal com o pequeno frasco transparente que repousava, inanimado, no fundo da gaveta de sua escrivaninha. Ali, em meio à quinquilharias de toda ordem, o amado objeto representava segurança e ternura quando ela sentia-se ameaçada pelos rugidos e movimentos do mundo.
O recipiente cilíndrico tornara-se sua única e afável companhia, com o qual compartilhava o roteiro de seu excêntrico universo juvenil. Podia mesmo sentir a emanação de uma admirável energia quando acolhia-o carinhosamente por entre os delicados e trêmulos dedos de menina, em um ritual de adoração nunca antes relatado.
Na verdade, o frasco, em sua mera condição de simples objeto não valia nada em si. A poção mágica que ele encerrava, essa sim, significava para ela a crucial diferença entre a antítese vida e morte.
Sob os efeitos da felicidade artificial dos amarelecidos e poderosos comprimidos, seus dias em tons de cinema noir transformaram-se repentinamente em alegres festivais matutinos, profusamente coloridos, como aqueles celebrados por alunos - que todos fomos - do primário escolar na saída da sala de aula, logo após o badalo triunfante da sineta, em um radiante carnaval.
No interior do inocente receptáculo portátil, a extensão voluptuosa de um súbito prazer, fulgurante, como o ectoplasma de um gênio das mil e uma noites, alforriado enfim de sua lâmpada, após eternidades de terror e solidão.
Tamires maravilhava-se com a experiência: um preparado químico intervindo magnificamente no cenário estabelecido da existência, dando-lhe acesso à força do universo através do imaginário e saboroso atalho do instinto.
Adouls Huxley a compreenderia?
As propriedades da substância modificavam quase fisicamente o soturno planeta à sua volta. Em sua concepção psicodélica beatnik, ela detinha o controle do sistema de coisas em sua mente e de lá, como de um centro de operações ou de uma torre de comando, tal qual uma divindade maia revestida de poderes supremos, adequava a seu bel-prazer o absurdo de estar viva.
Tamires acabara de sair do jardim da melancolia. Desde o fim da infância estivera ela navegando em longos episódios de depressão, sem causa específica.
O diagnóstico sombrio da patologia, proferido pelos analistas em discordância com a angelical pureza de uma garotinha, soou como um impropério pelos cantos dos gélidos consultórios, em diálogos antissépticos sussurrados com sua mãe: uma boa senhora que, como todas as outras boas senhoras, não merecia passar por aquilo.
Durante o transcorrer de sua suposta enfermidade, Tamires não arriscara pôr o pé na rua, pois havia um monstro lá fora desencaminhando toda a Terra habitada. As notícias dos jornais e o tagarelar zombeteiro da televisão sob hipótese nenhuma poderiam ingressar em seu convívio, visto que um alucinante crime bárbaro repercutiria intensamente em seu comportamento sensível, agravando o já hitchcockeano estado em que ela se encontrava. Uma pesada farmacologia teve que ser prescrita e ela tornara-se reclusa, quase alheia ao que se passava ao seu redor.
As receitas trouxeram para o dia-a-dia de Tamires remédios, receptores de serotonina e um sem-número de outras denominações, bulas e prospectos. Seu verdadeiro arsenal de venenos para exterminar a vetusta dama Tristeza por vezes remontava à incoerência de alguns cientistas do século XIX, que recomendavam arsênico para matar ratos e cianureto para debelar infecções como sífilis.
Então deu-se que, ao fim de uma sexta-feira roxa, à boca da noite, com o barulho dos pratos ricocheteando na cozinha, ela surgiu na escada, rosto levemente maquiado, exalando um discreto perfume, lindamente vestida de negro no esplendor de seus dezesseis anos. Deslizava lenta e suavemente pelos degraus, avançando em direção à sala, após séculos de clausura trancafiada em seu quarto de princesa, atormentada por um dragão que relutava em deixa-la sair das doentias profundezas.
A envelhecida senhora já não lembrava de ter visto sua filha envolvida em tão intenso frescor de liberdade e aparentemente curada de todos os males que a assolavam.
Tamires, com um brilho vulcânico no olhar, lacônica e irresistível, como se fora uma sacerdotisa egípcia levantada das tumbas imemoriais, apenas disse:
- Mãe, comecei a ser feliz hoje, pois amanhã não poderei ser.
Tal revelação bastou para que família e amigos fossem colocados a par da grande notícia. Sua ressurreição mostrou o quanto ela era querida: organizaram até mesmo uma estrondosa festa em sua homenagem nos jardins da casa: um mar de gente veio dar as boas-vindas à Tamires.
Ela, indiferente a tudo, parecia estar se divertindo com toda aquela bajulação, um copo de vinho numa mão, o cigarro escondido na outra.
Entre todas as drogas que passaram por seu crivo, ela havia descoberto o poder miraculoso da idolatrada substância contida em seu amado frasco, a única que julgou realmente capaz de devolver-lhe a vida. Para alívio do médico que, informado da eficiência do fármaco pela própria paciente, não titubeou em receitá-lo, dada à ventura de suas propriedades divinas e também porque estava um tanto quanto desmoralizado pela família em virtude dos sucessivos fracassos naquele tratamento.
O fato é que logo Tamires estava de volta à escola e em pleno convívio social com o mundo que antes a aterrorizava.
Todavia, estava claro: ela não podia mais viver sem aquele rio de toxinas a encher-lhe as veias. Sabia bem disso porque, certa vez, atravessara horríveis horas no meio de uma madrugada, quando o efeito do psicotrópico cessou abruptamente e os espectros que a assombravam começaram a andar perigosamente em derredor.
Ao buscar suprimento para de novo ter acesso às portas do paraíso, descobriu em desespero a embalagem inteiramente vazia. Sob uma capa de pânico, acordou o psiquiatra, que em instantes surgiu na porta da frente, sonâmbulo e insone, com um frasco novinho em folha, cheinho de vida. Vida sintética, a estimular circuitos elétricos e a detonar neuro-explosões em seu cérebro, como se fora o inconcebível personagem de Mary Shelley.
Tamires aprendera a lição e desde então levava consigo aonde quer que fosse o sentido da sua existência no invólucro compacto, assegurando-se de que jamais aconteceria algo semelhante novamente.
Onde já se vira aquilo? Não seria surpreendida pois, prometera a si mesma.
O problema é que ela tinha perdido a noção da realidade, transgredido a fronteira entre sanidade e loucura, embora estes fossem pólos nem tão diametricalmente opostos assim. Para ser sincero, acontecia ali um episódio de abuso de drogas, totalmente avesso à posologia recomendada ao tratamento.
Até mesmo ao mercado negro Tamires já havia recorrido, impelida que fora pela negativa do médico em suprir-lhe o estoque. Este tomou tal decisão pelo fato de já estar bastante desconfiado dos desdobramentos bizarros que ali se descortinavam.
O que se poderia esperar senão um desfecho digno das historietas do Anjo Pornográfico?
Foi assim que sua mãe a encontrou, debruçada sobre a escrivaninha, um mar de sangue tingindo os papéis, pálida e graciosa em seu vestido de donzela, como a bela adormecida do conto de fadas de Charles Perrault.
Por algum motivo, ela, tendo ingerido o último comprimido, usara o recipiente vazio para guardar uma meia dúzia de percevejos, esses pequenos cravos usados para fixar avisos em flanelógrafos, integrantes que eram de um trabalho escolar a respeito de Tristan Tzara, apresentado há poucas horas na Semana de Literatura para uma turma encantada pela eloqüência da gótica menina.
Suspeita-se que, em um tresloucado ato, atacada pela violência da ansiedade, tomada de aflição e com o terrível episódio daquela madrugada ainda fresco na memória, levara o frasco à boca, esquecendo-se completamente do conteúdo.
Um dos cravinhos, ou vários deles, não se sabe precisar ao certo, rasgara sua carótida, provocando a fatal hemorragia, em uma única e derradeira dose letal.
Daquela vez, o frasco continha a morte e não a vida, que vinha sendo tão apaixonadamente administrada e em porções cada vez mais revigorantes.
Decretou-se então o fim do estranho mundo de Tamires.

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