sábado, 16 de agosto de 2008

DR. TELLER

DR. TELLER
Nelson Silva

O respeitado Dr. Teller não parecia excêntrico nem senil. Aos 86 anos, o brilhante cientista ainda era muito requisitado entre estudantes, repórteres, admiradores e pela fina flor da comunidade acadêmica em sua belíssima propriedade, na área residencial de sua estimada universidade. A sumidade recebia a todos com muita elegância e cortesia, afundado em sua poltrona de uma cor opaca, numa voz poderosa, levando os aprendizes aos áureos tempos em que discorrera sobre sua polêmica pesquisa biológica, onde tentara demonstrar, sem êxito, que a salvação ética da humanidade residia no estudo da evolução dos microorganismos causadores de patologias e em sua intrínseca relação com a espécie humana.
- Um vírus em sua gênese é mortal, – dizia – mas ao longo do tempo em que estivesse co-existindo com o homem, aperfeiçoar-se-ia mutuamente, junto com o homem, condicionando as duas espécies a um estágio padrão de desenvolvimento moral que, por sua vez, aniquilaria qualquer instinto predatório e parasitário, embora as primeiras gerações tendessem a desaparecer precocemente em detrimento das próximas.
- Tal processo – rosnava ele – repercutiria na estruturas dos genes vitais a ponto de mudar a ótica da lei da sobrevivência das espécies.
Escusado dizer que o Dr. Teller fora muito combatido pela comunidade científica de seu tempo e tão duro discurso apresentara-se difícil de assimilar, já que sugeria a suspensão de todo e qualquer remédio ou tratamento médico para vítimas de enfermidades provocadas por microorganismos.
- Morrerão milhões, mas os descendentes inaugurarão uma nova era na história da humanidade: a era da perfeição moral e física do homo sapiens. Como vêem, está na hora do sacrifício. – propagava ele a inúmeras platéias estarrecidas ao redor do globo.
Na verdade o Dr. Teller era um apaixonado pela raça humana e não aceitava o fato de como uma fantástica criatura dotada de tanta complexidade fosse obcecada em derramar o próprio sangue. O renomado homem de ciências saíra perplexo da I Guerra mundial, entrara em colapso após o II grande cataclisma e, ao presenciar inocentes despencando do alto do World Trade Center em chamas, desiludiu-se para .
- A humanidade não quer se salvar. – concluiu, impotente e ferido por dentro.
Convidado a retirar-se ao ocaso e sobretudo depois de sofrer um atentado no qual morrera-lhe a mulher, fora habitar no campus, no meio de seu adorado ambiente acadêmico, onde transmitia seu amplo conhecimento às debutantes gerações. Jamais aposentara-se e era visto constantemente a fitar as estruturas cósmicas que resplandeciam no céu noturno, como se estivesse a confabular com civilizações em adiantado estágio de evolução, a duzentos anos-luz dali.
Estava absolutamente convicto de que o drama da morte e da violência no inconsciente coletivo humano estimulava o fenômeno do registro automático da memória, privilegiando a por ele denominada “possibilidade do fim” nos arquivos intangíveis da personalidade, que por sua vez desencadeava súbitas cadeias de pensamentos negativos e auto-destruidores. Estes, por sua vez, disparariam um gatilho emocional instantâneo, que seria responsável pelas várias modalidades de mortandade e carnificina em série verificadas em todas as camadas da sociedade humana ao longo dos tempos.
Mas ultimamente o eminente professor estava comprometido com um projeto mais arrojado. Julgava-se capaz de empreender sua última missão científica, a despeito de uma depressão que o estava acometendo. Tencionava organizar uma expedição com o objetivo de encontrar os últimos exemplares ativos preservados do vírus da gripe espanhola, a mais terrível pandemia da História, que em apenas dois meses do longícuo 1918 dizimou nada mais nada menos do que 20 milhões de pessoas.
Quando ficou a par dos intentos do mestre, o reitor farejou aí boa publicidade para sua combalida universidade e transformou a aventura do Dr. Teller em um grandioso evento acadêmico, onde até mesmo o governador compareceu, trazendo consigo um sem-número de ex-detratores do abnegado cientista.
O Dr. Teller sabia que a única chance de encontrar o vírus seria localizar corpos que, uma vez enterrados estivessem completamente congelados. E assim, os “Sentinelas da Humanidade” - que era como a imprensa havia batizado sua equipe - partiram para as regiões mais remotas do planeta, em busca do terrível inimigo adormecido.
Tentaram cemitérios no Alasca, Sibéria e Islândia, sem obter sucesso. Sua extraordinária força de vontade, porém, contagiou a todos e parecia que o professor – obstinado – estava na flor da idade, como na época em que defendia sua teoria tenazmente.
Ao cabo de quatro anos seu esforço foi recompensado: descobriu uma pequena ilha congelada nos confins do Ártico, onde o gelo jamais derretia. Desbravando a tundra, trouxe à tona sete múmias de gelo preservadas há décadas. Tratavam-se de alpinistas que contraíram o vírus na Europa ao fim da I Guerra. Com dois enormes tubos de biópsia, extraiu fragmentos de pulmões, garganta e cérebro dos corpos e, num improvisado laboratório de segurança máxima, conseguiu isolar o micróbio letal.
O Dr. Teller tinha em mente divulgar sua singular e festejada descoberta em uma excursão ao redor do mundo. Afinal de contas, estava no ápice de sua carreira. E, pela primeira vez, com um incomensurável poder de destruição nas mãos.
Jul/06

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