terça-feira, 23 de junho de 2009

A invenção do jovem brasileiro moderno

O sucesso estrondoso desse disco afetou a sua aura cult. Mas, sem exagero algum, Nós vamos invadir sua praia é um dos primeiros clássicos instantâneos da música jovem brasileira. Um álbum irretocável. Que apareceu na hora certa, no momento certo, no contexto perfeito.

O Brasil vivia o início da abertura política. A ditadura já não era tão dura quanto antes, mas não era bom dar bobeira. Naquela época, entre 1983 e 85, era preciso ter cultura para mijar na escultura. Ou seja, dava para meter a boca, desde que fizesse isso com inteligência, refinamento, sagacidade, coisas que os censores não entendiam.

Musicalmente, o cenário brasileiro sentia uma efervescência, uma coceira atrás da orelha. Alguma coisa estava acontecendo, tinha gente se mexendo, acenderam o fósforo, colocaram fogo no pavio curto. Lá vinha explosão.

O jovem se preocupava, de maneiras equivalentes, com a namorada que queria sair sozinha e o deixava morrendo de ciúmes, com sua falta de auto-estima, com a decepção de uma brilhante seleção brasileira ante ao futebol pragmático (que vinha para ditar as regras do esporte bretão no mundo, mais adiante), com a vontade de votar, com uma gravidez indesejada, o bon-vivant que não quer casar, com o direito de saber escolher presidente. Diretas já, Democracia Corintiana, Sócrates, Falcão, Zico, Casagrande, Chulapa, Ulisses Guimarães, Marcelo Rubens Paiva, Partido dos Trabalhadores, Lula. O Brasil estava mudando.

E tudo isso povoava a cabeça da rapaziada. E, infelizmente, o país não ouvia nada disso no rádio. A música popular jovem praticamente não existia. O rock dava seus primeiros passos, mas ainda não tinha poder de identificação suficiente. A MPB de então, com o ego inflado, caminhava desesperadamente rumo ao erudito, ao altar das vacas sagradas, comemorando gols do passado e não fazendo por merecer toda idolatria. Esqueceu para quem falava, para quem cantava. Compunha para si mesma, não para o público. Ninguém entendia nada.

Antena privilegiada, senso crítico apurado, QI acima da média, o garoto Roger Rocha Moreira soube captar tudo que estava acontecendo, todos os temas que estavam rondando a cabeça dos brasileiros. Juntou sua banda, chamou os conhecidos, os mais chegados, e gravou o disco que faltava para aquela multidão que pedia voto e liberdade cantar em uníssono lá na Praça da Sé. “Inútil, a gente somos inútil”.

Em 13 de janeiro de 1984, o principal nome das campanhas da Diretas, conhecido como Sr. Diretas em pessoa, deputado federal Ulysses Guimarães, declarou que ia mandar o compacto de "Inútil" para o presidente João Figueiredo. A letra dizia, entre outras coisas, que "a gente não sabemos escolher presidente / A gente não sabemos tomar conta da gente". A citação ratificava o jovem rock nacional como trilha sonora da década.

Sem querer (querendo), Roger compôs alguns hinos de sua geração. Nós vamos invadir sua praia é mais do que um disco de carreira, é um verdadeiro “grandes sucessos”. Da faixa 01 a 11, com exceção de “Jesse Go”, todas tocaram muito no rádio e todos nós cantamos junto. O disco certo na hora certa.

Na verdade, o disco, lançado em 85, já estava na cabeça de Roger há algum tempo. Já amargara uma inesperada “geladeira” em 1983 quando o compacto de “Inútil” (com “Mim Quer Tocar” no lado b) foi lançado e a canção já se havia se tornado um grande sucesso e tema das Diretas. Nesse meio tema, o guitarrista Edgard Scandurra (autor do brilhante riff de abertura da música) saiu da banda para se dedicar inteiramente ao Ira! e a formação do Ultraje se estabilizou com Roger (vocal, guitarra, sax alto), Carlinhos (guitarra), Maurício (baixo e vocal) e Leôspa (bateria e percussão).

No ano seguinte, lançaram outro compacto, com "Eu me amo” / ”Rebelde sem causa". "Eu me amo" foi bem nas rádios, impulsionado um pouco pela polêmica coincidência de refrões com a música “Egotrip”, da Blitz. Mas foi o lado b do compacto que começou a tocar nos primeiros meses de 85 e que detonou a explosão do Ultraje. Aí o produtor Liminha se convenceu de que era hora de lançar um disco “cheio”.

E acertou na mosca. Nós vamos invadir sua praia foi o primeiro LP de rock nacional a conseguir discos de ouro e platina. O primeiro sucesso foi “Ciúme”, faixa 5 do LP e talvez o maior hit single já composto em língua portuguesa. Os valores estavam mudando, o Brasil estava mudando, e as mulheres brasileiras começavam a gozar, muito mais livremente, de direitos conquistados no mundo no começo dos anos de 1970. As mulheres já tomavam a iniciativa, ocupando cargos importantes e influindo diretamente no relacionamento. Diante disso, os defeitos de todos os homens ficavam escancarados: machismo, insegurança, “direito de posse”. Todo mundo se identificou: os homens e as mulheres. E todos cantaram juntos, “mas eu me mordo de ciúme”, e tudo se resolveu.

Com isso, Roger e o Ultraje penetravam (ops!) na classe jovem e estabeleciam um novo tipo de artista na música brasileira. O artista “gente como a gente”. Os quatro do Ultraje pareciam sofrer dos mesmos problemas que atingiam todo mundo, encaravam os obstáculos com bom humor, tiravam sarro de si mesmos e falavam na língua que todos entendiam.

E usavam do humor. Sutil, ácido, tipicamente paulistano – diferente do deboche escrachado carioca, estampado na Blitz. Um humor que vem de uma tradicional escola paulistana, de Joelho de Porco e Premeditando o Breque. Tem muito dessas duas bandas na letra de Roger.

Talvez, seja por isso que deu tão certo. Poucos conhecem rock como Roger. Tudo de bom que o gênero produziu – e derivados - pode ser ouvido em “Nós vamos invadir...”. Rockabilly, new wave, punk, mod, reggae, Chuck Berry, Beach Boys, Beatles, Clash e Pistols. E, graças a Deus, Roger é brasileiro. Tem a malandragem do samba paulistano, a melancolia do compositor de rua, dos bares. Irresistível.

E veio a cachoeira de sucessos. “Rebelde sem causa” criticava duramente a classe média branca que não tinha contra quem se rebelar, já que tinha tudo e não precisava sofrer para conquistar nada. Mesma classe que Roger pertencia.

A falta de lugares e apoio para novos músicos, a dureza do underground vinha em “Mim quer tocar”, sonhando ainda com uma utópica era em que se poderia ganhar dinheiro com música. Havia a monogamia e a vontade de ficar livre de “Zoraide”, o nonsense de “Marylou”, a ânsia de ficar famoso a qualquer custo em “Jesse Go” (antecipando uma realidade em 20 anos), afirmação da auto-estima com “Eu Me Amo”, “Nós vamos invadir sua praia”, a faixa-título, criticando duramente os cariocas da Zona Sul que não queriam se espremer dentro do ônibus para a praia com os chamados “farofeiros” (com direito a participação dos cariocas Lobão, este cantando “cadê a minha farofinha, Roger?” e Léo Jaime), “Se Você Sabia”... O grito de liberdade “Independente Futebol Clube”, “Eu não sou seu / Eu não sou de ninguém / Você não é minha / Eu não tenho ninguém/ Nós somos livres”...

A censura cismou com “Marylou”, mas não adiantou proibir a execução, fez sucesso assim mesmo. Um ano depois, gravaram um EP chamado "Liberdade para Marylou", com uma versão remixada de "Nós vamos invadir sua praia", o "Hino dos Cafajestes", e a música "Marylou" gravada em ritmo de carnaval e com as frases censuradas substituídas por frases de trombone. "Marylou" arrebentou nos bailes de carnaval daquele ano e até hoje continua sendo tocada quase como um clássico carnavalesco. Fato inédito, vindo de uma banda de rock.

O disco foi um dos melhores lançamentos de 85, no Brasil e no mundo. Um álbum de estréia com um padrão de qualidade altíssimo; uma obra-prima instantânea, elevado a um patamar difícil de ser batido. Até mesmo pelo próprio Ultraje a Rigor.

Alexandre Petillo é jornalista. Acabou de editar o livro Noite passada um disco salvou minha vida (Geração Editorial), em que 65 músicos e jornalistas falam sobre seus discos favoritos. Trabalhou no Notícias Populares, no Agora SP e criou a revista Zero. É colunista do jornal Diário da Manhã (GO) e colaborador da Folha, do Estado de S. Paulo e de diversas publicações brasileiras, como a Bravo! e a Outracoisa.

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