terça-feira, 21 de julho de 2009

Existe um estilo tardio?

O que a proximidade do fim da vida representa para a obra de um artista



Dizem que idade e sabedoria caminham juntas. Tenho lá minhas dúvidas. Vi muito ancião tolo ou criança genial. O dramaturgo norueguês Henryk Ibsen (1828-1906) aloprou no fim da vida e produziu a grotesquerie Quando os mortos acordam, uma peça que ficaria bem como obra juvenil – mas que parece meio ridícula na imaginação de um homem de 70 anos. Do outro lado está o poeta francês Arthur Rimbaud (1854-1891). Aos 19 anos, ele já tinha realizado toda a sua obra exuberante e iconoclasta. Mas o padrão dominante na cultura e na vida é o juízo chegar com a maturidade. De fato, a proximidade da morte infunde um senso de urgência no indivíduo, em especial no artista. Ele é capaz de iluminar a totalidade da vida e da obra, como uma coda ou um epílogo justificador.

O acasalamento da ansiedade e da consciência da finitude daria à luz o “estilo tardio”. Como pode ser definido esse estilo? A resignação perante a morte; a transcendência, a superação dos sentidos e da vida em um mundo que deve ser deixado pra trás; o rompimento intransigente com os padrões sociais e artísticos – tudo parece caber na etiqueta de estilo tardio, a resposta final sob a forma de obra de arte. Continuo a achar a noção bem duvidosa.

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É preciso entender a expressão. Ela parece óbvia na música, na pintura e na literatura. A Décima Sinfonia, que o compositor austríaco Gustav Mahler deixou incompleta, ou as derradeiras telas de Tiziano e Rembrandt são exemplos de obras sombrias e maduras geradas nos últimos estertores dos artistas. William Shakespeare evocou a sabedoria dos velhos (e a converteu em obra de arte) em A tempestade e o O conto de inverno. Aos 86 anos, muito doente, o português José Saramago exibe energia em um blog formatado como testamento. Uma condição biológica – a velhice, ou a consciência do fim – parece se intrometer na forma e no método usados pelos artistas. A vida e a arte no fim das contas se influenciam entre si. Assim, o estilo tardio faz todo sentido.

O conceito foi empregado pela primeira vez pelo filósofo alemão Theodor Adorno no ensaio O estilo tardio de Beethoven, de 1937 – e retomado pelo ensaísta palestino Edward Said no livro Estilo tardio (Companhia das letras, 192 páginas, tradução de Samuel Titan Jr, R$ 43,50). Adorno analisou os seis últimos quartetos de Ludwig van Beethoven como o exílio do artista. A esse terceiro período da criatividade do compositor alemão pertenceriam a Missa soleminis, a Nona Sinfonia e as cinco últimas sonatas para piano. Com heroica teimosia, Beethoven teria se elevado em relação a seu tempo, criando peças musicais que desafiaram o público e os padrões de julgamento da crítica. Entre o mundo real e o novo universo sintetizado, o artista maduro não tem dúvida de optar pelo segundo. O estilo tardio seria então a vitória da arte sobre o tempo histórico – elevando a obra sobre a própria vida.

Ora, o salto transcendental que envolve o estilo tardio soa como pura metafísica. Said trata de colocar o conceito em perspectiva, pare despi-lo dos fantasmas. Para ele, o estilo tardio não passa de um impulso, para o bem ou para o mal. "Gostaria de explorar a experiência de um estilo tardio que tem a ver com uma tensão despida de harmonia ou serenidade, com uma produtividade coscientemente improdutiva, do contra...", afirma Said. Ele diz ainda que o estilo tardio a um tempo faz parte e está à parte do presente: “São poucos os artistas e pensadores capazes de levar seu ofício tão a sério a ponto de perceber que também ele envelhece e deve enfrentar a morte, sem poder recorrer senão à memória e aos sentidos em decadência”. As obras tardias, em uma palavra, carregam uma única mensagem: que todos vamos morrer, e que a morte deve ser encarada nos olhos. É a dramatização da lucidez in extremis. Said analisa então as obras finais de Mozart e Jean Genet, e a retirada de cena do pianista canadense Glenn Gould. Este "virtuose intelectual" se exilou dos concertos e dedicou seus últimos anos de vida (morreu aos 50, em 1982) à negação do mundo em nome da criação de gravações insuperáveis.

Edward Said estava às voltas com essas reflexões quando, numa terça-feira de manhã, em 25 de setembro de 2003, morreu, vitimado por um câncer. Planejava concluir o ensaio dali a três meses. Seu aluno em Princeton, Michael Wood, encarregou-se de prefaciar e organizar o material. Said tinha 67 anos e, segundo Wood, não viveu o suficiente para desesenvolver seu próprio “estilo tardio”. O texto de Said, um militante da intifada palestina, professor na Universidade de Columbia e pianista de concerto, soa como uma obra de um jovem virtuose. Se ele foi assombrado pela ideia do estilo tardio, acossado pela luta contra o câncer, nada indica que tenha sido levado por uma urgência a concluir o trabalho. E assim o próprio Said refuta a noção que tentou elaborar sem concuir. O estilo tardio, pelo menos com ele, não aconteceu. Seu temperamento não praticou essa operação, diferentemente de Beethoven ou Glenn Gould. Lamentável e ironicamente, Said deixou essas questões apenas esboçadas.

Isso me faz pensar que o estilo tardio não passa do resultado da imaginação e do inconsciente do artista. Ao divisar a morte se aproximando, ele precisa se reinventar como um sujeito que não tem mais tempo – e só lhe resta pensar grande. Em muitos casos, porém, só é possível compreender essa modalidade de estilo quando a vida e a obra do autor convergem para o mesmo final. Talvez sejam as obras incompletas as que melhor representem a condição humana. E nunca é tarde para um fragmento.

Luís Antônio Giron
Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV

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