segunda-feira, 1 de setembro de 2008

A VIAGEM FANTÁSTICA - AÍLA SAMPAIO(Prof. da Unifor)




Escrever é uma arte e, como toda arte, requer perícia. No caso da literatura, pode-se dizer que o texto é ´tecido´ pela arte de engolir e ´desengolir´ palavras, numa atitude consciente da criação. Lourdinha Leite Barbosa, em seu livro de contos ´A arte de engolir palavras´, já anuncia esse processo a partir do título da obra, que Vicência Jaguaribe bem marcou como uma reflexão metalingüística. O conto homônimo é uma metáfora desse exercício, sem dúvida. Essa escritura é o motivo dessa edição.Embora se saiba que a inventividade não decorra de técnicas, mas do poder de captar, da imaginação, da observação ou da memória, a matéria sensível que dá ´vida´ aos enredos, percebe-se, nos contos de Lourdinha, o apuro formal de quem bem domina a técnica do conto. Sua frase enxuta e seus enredos concisos mostram um trabalho de linguagem cuidadoso, elaborado com precisão e consciência. A teoria literária, como as tantas teorias do texto, se diluem no uso de recursos como a intertextualidade, o efeito fantástico e a ambigüidade. Seus textos não subestimam o leitor, ao contrário, convidam-no ao mergulho, à prospecção, à construção da lógica (ou da subversão dela) que , desse modo, subjaz nas entrelinhas.A presença do fantásticoO Fantástico, gênero que se estabelece a partir de um acontecimento não explicável pelas leis da razão, está presente em pelo menos seis das narrativas do livro. Destaca-se a sutileza com que a autora consegue construir o clima extranatural, ao trabalhar, de forma tão harmoniosa, um tema tradicional como o tema do duplo´, no conto ´A viagem´ (p.32).É este um dos mais antigos temas explorados pela literatura, tendo aparecido mais notoriamente no século XIX, quando vieram a lume as produções de E. T. A. Hoffmann, Edgar Allan Poe, Guy de Maupassant e Dostoievski. A sua origem, no entanto, remonta à Antigüidade Clássica, pois, como afirma Clément Rosset (1976:61), ´os personagens de Sósia ou de irmão-gêmeo ocupam um lugar no teatro antigo, como no Anfitrião ou em Os Menecmas de Plauto´. O tema ultrapassa a expressão literária, estendendo-se, ainda, à pintura, à música, ao cinema.O desdobramento do eu que, na realidade, vem possibilitar o encontro desse eu consigo mesmo, resulta, geralmente, de um conflito existencial que leva o sujeito a buscar a sua verdadeira essência. Clément Rosset (1976) afirma que a restituição desse eu, ou seja, a ´reconciliação de si consigo mesmo´ (p. 77), ansiada pelo indivíduo em conflito, só é possível através da aniquilação do duplo. Já na literatura romântica, conforme assinala o filósofo, ocorre o contrário, pois ´a perda do duplo, do reflexo, da sombra não é [...] libertação, mas efeito maléfico´ (p. 78). A destruição do duplo implica a destruição do eu. No seu ponto de vista, inclusive, o duplo não passa de uma ilusão: ´Quem repete não diz nada, quer dizer, não é nem capaz de repetir-se. O original deve dispensar qualquer imagem: se não me encontro em mim mesmo, reencontrar-me-ei ainda bem menos no meu eco. É preciso então que eu seja suficiente, por menor que seja ou pareça na realidade: porque a escolha se limita ao único, que é muito pouco, e ao seu duplo que não é nada´ (ROSSET, 1976: 83-4).A tessitura dramáticaA narrativa do conto ´A viagem´, de Lourdinha Leite Barbosa, não dá nenhuma pista sobre a personagem, que não tem nome nem idade ou qualquer característica que faça o leitor criar uma imagem. Sua aparição dá-se já quase como um ser etéreo, que vai ao encontro do seu destino. Seu? ´Tinha encontrado o misterioso bilhete, com a hora da viagem, o número do guichê e o código, sobre a mesinha de cabeceira do namorado e resolvera descobrir aonde ele ia e com quem´. Logo ela se apercebe que ´varou a noite sem saber o motivo e o destino da viagem´ e questiona se realmente estaria ali por acaso.Sem entender, após dar a senha ao ´homem alto e magro´ do guichê, recebe o tíquete e um livro de capa azul sem qualquer inscrição. Também sem autor e com um título em língua desconhecida, o livro traz textos em língua inteligível e desenhos estranhos: ´um ovo contendo uma figura metade macho, metade fêmea, sobre um dragão alado; um pássaro de asas abertas, cuja sombra era uma figura humana; uma cruz, cujos braços terminavam em triângulos e, embaixo de cada braço, um círculo com um quadrado dentro. Uma seta feita à mão, apontava para um deles: um círculo sextavado, com vários círculos concêntricos, interrompidos em certos pontos´. O mistério se ´concretiza´ e o significado da senha - Hâdi - bem como do símbolo indicado pela seta, causam certa inquietação no leitor. A personagem, entretanto, limita-se a tentar decifrar o símbolo e a incomodar-se com o vazio na estação, no restaurante e no próprio trem. Só no vagão indicado no tíquete há pessoas.Reações da personagemAssustada com a ausência de estrutura para a viagem - não há sequer camareiro ou funcionário no trem - ela, após percorrer todos os vagões e perceber que não há ninguém, retorna ao seu e se dirige às pessoas, demonstrando seu nervosismo na tentativa de compreender a situação. Os passageiros, na tranqüilidade dos que já tudo entenderam, respondem-lhe com certo desvelo, como a se darem conta de que ela precisa se acalmar: ´Os dois velhinhos pareciam não ter entendido. A senhora de meia-idade procurou acalmá-la´; ´contemporizou o homem de olhos azuis´; ´Todos se entreolharam´; ´A jovem de cinza acompanhou-a´. Solenes como os mortos, os passageiros do trem deslizam sobre os trilhos, em velocidade lenta e, sem saberem aonde ou a que vão, chegam a uma estação iluminada, sem indicações; ´um prédio deserto de paredes completamente brancas e nuas´. A reação da moça, a única a, aparentemente, não saber o que se passa, é, desse modo, de ´calafrio´, solidão, medo.

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